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Leituras para esquecer (e lembrar) 2020

Roberto Seabra - 11/01/2021




Em um ano sem nada a ser comemorado, e de reclusão obrigatória, as leituras se tornaram uma espécie de bote salva-vidas. Faço a seguir um ligeiro relato sobre o que foi lido, mais para servir de arquivo e memória das leituras. Entretanto, há livros muito bons, o que pode ajudar a jovem leitora a se guiar pelos meandros da literatura clássica, moderna e contemporânea. Boa leitura!


Comecei o ano lendo O Romance da minha vida, livro do escritor cubano Leonardo Padura que conta a história do poeta José Maria Heredia. A história desdobra-se em outras duas: a dos herdeiros de Heredia e a de um poeta exilado, na Cuba do século XX, e que busca um valioso manuscrito de Heredia, datado do século XIX. Se esse livro de Padura não é tão bom quanto O homem que amava os cachorros, certamente possui uma inventividade narrativa que impressiona. Vale conhecer a vida de Heredia, considerado um dos mais importantes poetas das Américas.


Pulei para outro romance histórico, que se passa também no século XIX, mas desta vez no Brasil e durante a Guerra do Paraguai. O rastro do jaguar, de Murilo Carvalho, é um épico monumental sobre o maior conflito da América do Sul, pelo olhar de um jornalista português que vem para o Brasil na condição de correspondente de um jornal francês, acompanhado de um amigo brasileiro de origem indígena, e que por ter sido criado em Paris desde criança, decide voltar ao Brasil em busca de suas origens. A busca dos Guaranis pela “Terra sem males” é o que o livro traz de mais belo e atual.


Fevereiro, o país em ritmo de carnaval, mas a leitura que me caiu nas mãos não foi nada festiva. Mulheres empilhadas (leia aqui a resenha completa), de Patrícia Melo, é um misto de romance e pesquisa sobre a violência contra a mulher. Livro contundente, que deveria ser leitura obrigatória para homens de todas as idades. Patrícia Melo bate sem dó no machismo à brasileira.


Sobre os ossos do mortos, da polonesa Olga Takarczuk, não parece um livro de uma laureada pelo mais importante prêmio de Literatura do mundo (ela recebeu o Nobel em 2019). Escrito de forma direta e sem segredos aparentes, Olga consegue misturar romance policial com reflexões profundas sobre o mal estar da humanidade nesse início do século XXI.


Clássicos

Os meses de março e abril, já em plena pandemia, foram dedicados a leituras (ou releituras) de clássicos que me aguardavam pacientemente em uma prateleira da estante. Li pela primeira vez A força da idade, de Simone de Beauvoir, um de seus livros de memórias, e uma continuação de Memórias de uma moça bem-comportada. Dedicado a Jean-Paul Sartre, seu parceiro de toda a vida, o livro retrata a vida da autora (e de certa forma também a do filósofo) dos 21 aos 36 anos (1929-1944), enquanto Memórias de uma moça...retrata sua infância e adolescência. Narrativa densa, às vezes arrastada em razão das crises existenciais de Simone de Beauvoir, mas que traz nos relatos sobre a Segunda Guerra uma experiência de vida que impressiona. Como aquela gente conseguia viver e sonhar naquele caos? Serve de lição para o Brasil de hoje.


Aproveitei a reclusão provocada pelo coronavírus e reli (ou li de verdade, pois a primeira leitura foi feita às pressas e na universidade), Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Genial e, quase sempre, arcaico, Freyre é o próprio Brasil, com sua força, belezas e contradições. Um clássico que ajuda a explicar, por vias transversas, a nossa sociedade racista e elitista.


Inevitável em tempos de pandemia foi ler A peste, de Albert Camus. Já tinha lido quase tudo do autor francês, mas sempre pulava esse livro. O romance ajuda a entender como o “ser humano universal” lida com as tragédias coletivas, e como o embate entre ciência e superstição será sempre uma arma a favor dos poderosos.


Sem novidades no mercado literário, me voltei para O poder do mito, de Joseph Campbell, outro que havia lido e largado pela metade. Livro de uma riqueza impressionante e de uma erudição simples e fácil de ser assimilada, me ajudou nesses tempos de quarentena. Um trecho que talvez resuma o seu conteúdo desigual: “(...) a tecnologia não vai nos salvar. Nossos computadores, nossas ferramentas, nossas máquinas não são suficientes. Temos que confiar em nossa intuição, em nosso verdadeiro ser”.


Outra leitura “do passado” foi Stefan Zweig, o talentoso escritor austríaco (de origem judaica) que tirou a própria vida quando vivia no Brasil, em 1942, desgostoso com “a barbárie hitlerista”, como lembra o jornalista Alberto Dines, que escreve o prefácio do livro. 24 horas na vida de uma mulher e outras novelas mostra a incrível capacidade narrativa de Zweig, que consegue entreter o leitor sempre de forma inteligente.


Romance delicado


Em abril retomei a leitura de lançamentos literários. E escolhi o ótimo A valentia das personagens secundárias, de Stella Maris Rezende. Romance delicado e marcado pela oralidade forte da autora, é uma narrativa leve e bonita mas, como escreveu a também escritora Rosângela Vieira Rocha sobre o livro: a “leveza é aparente e a autora deixa a decisão por conta do leitor”. O tema central do romance é um encontro de família no interior de Minas. Uma tragédia teria ocorrido em 1961 e dois irmãos, Reginaldo e Fabiano, resolvem gravar um documentário em que cada membro da família é entrevistado separadamente para, dessa forma, tentarem montar o quebra-cabeça sobre o que, de fato, ocorreu.


Um livro que influenciou Bob Dylan, entre outros artistas do século XX, e que talvez seja o primeiro romance pacifista da história, Nada de novo no front, do escritor alemão Erich Maria Remarque, me impressionou pela crueza da narrativa. Eu já havia visto o filme, em sua versão de 1979. O livro, no entanto, traz para a atualidade a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), contada por alguém que participou do conflito e que teve talento suficiente para não se deixar contaminar pela derrota do seu país na guerra. Remarque consegue pintar o horror sem meias palavras, mas ainda assim com grande dose de humanidade.


Maria Altamira, de Maria José Silveira, foi uma das boas surpresas do ano. Ao construir personagens fortes e apaixonantes, em uma história arrebatadora, Maria José Silveira consegue manter a narrativa literária, mesmo lidando com temas áridos, como a construção da usina de Belo Monte. Leia aqui a resenha completa.


Entre uma novidade e outra, um clássico me aguardava. Li o incrível As Minas de Prata, de José de Alencar. Misto de romance histórico e novela de cavalaria, o livro tem uma trama rica e personagens fortes, contudo sem ultrapassar o modelo do Romantismo do século XIX.


Já havia lido de Sándor Márai As brasas, um dos livros mais fortes que conheço sobre os temas do amor e da amizade. Em 2020 li Jogo de cena em Bolzano, onde Márai conta parte da vida de Giacomo Casanova, o sedutor mais afamado do mundo. Como Brasas, um romance repleto de alma.


Trapaça, do jornalista Luís Costa Pinto, o Lula, nos transporta para os anos 1990, ao romancear a experiência dele na condição de repórter que fez a famosa entrevista com Pedro Collor, e que representou o início do fim do governo do irmão. Narrativa muito bem escrita, que também traz boas lições sobre a política brasileira.


Leituras em espanhol


Li no original La tregua, do escritor uruguaio Mario Benedetti. A história do viúvo Martín Santomé, às vésperas de se aposentar, é uma das páginas mais lindas e comoventes da literatura latino-americana. Não deixe de ler. O livro tem edição em português.


Outra leitura em espanhol foi Los días del arco íris, do escritor chileno Antonio Skármeta, o mesmo autor de El cartero de Neruda, que li na sequência. Se neste ele mostra a amizade do poeta chileno com um humilde carteiro em meio à dolorosa história do Chile no início dos anos 1970, naquele ele narra a redenção de um país que disse Não!, no plebiscito que afastou a possibilidade de continuação da ditadura de Pinochet.


Carta à rainha louca, de Maria Valéria Rezende, é um romance epistolar, de uma longa e só carta, que conta a incrível história de Isabel das Santas Virgens, presa no convento do Recolhimento da Conceição, em Olinda, e que, sentindo-se injustiçada, resolve contar sua vida à rainha de Portugal, Dona Maria I.


Épico de Suassuna


Em 2021 o Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta, de Ariano Suassuna, completa cinquenta anos. Fiz enfim a leitura deste livro que me aguardava já há algum tempo. Que monumento! Que história louca! Suassuna é o nosso Cervantes.


Voltei à escritora italiana Elena Ferrante, para ler seu mais novo livro: A vida mentirosa dos adultos. Dela já havia lido A amiga genial, um dos quatro romances da tetralogia napolitana. Nessa nova obra ela comprova sua maior qualidade de escritora: tornar as personagens e o espaço que elas habitam (a cidade de Nápoles) uma só coisa, uma narrativa sem pontas soltas, que segura o leitor até o fim, e de forma quase ininterrupta.


Li na sequência dois romances históricos de autores nacionais. O governador do fim do mundo, de Sinval Medina, e A mulher que proclamou a República, de Aguinaldo Tadeu. Escrevi uma resenha para cada, que podem ser lidas clicando nos títulos. Recomendo os dois. Medina, pela artesania primorosa do seu texto; Tadeu, pela forma inventiva como reconta a história do marechal Deodoro, o nosso primeiro presidente.


Aproveitei para ler outro romance histórico de Medina: O mistério da estrada de Petrópolis: a primeira morte de Getúlio Vargas. Ao misturar ficção e realidade, Medina consegue dar uma dimensão humana à História do Brasil.


Em mais uma leitura em espanhol, li Una misma noche, do escritor argentino Leopoldo Brizuella. Leitura difícil, em razão das várias vozes do romance. Uma visão sem estereótipos sobre o horror que foi a ditadura argentina.


Histórias cortantes


O belo (e às vezes engraçado) livro de contos Redemoinho em dia quente, da escritora brasileira Jarid Arraes, é montado por histórias cortantes, às vezes surpreendentes, mas nunca casuais. Várias delas se passam em Juazeiro do Norte (CE), e me levaram de volta à cidade que pude visitar duas vezes.


A claridade lá fora, de Martha Medeiros, é um romance ligeiro, escrito por uma ótima cronista. Personagens fortes e uma história que consegue nos prender até o fim, mesmo que não saibamos o porquê.


Já o romance Marrom e amarelo, de Paulo Scott, surpreende ao contar a história de dois irmãos marcados pela discriminação racial no Brasil, mas com os sinais trocados. Enquanto Federico, o mais velho e mais claro, carrega uma raiva latente, por sentir a discriminação de forma mais racional, Lourenço, que é preto, bonito, joga basquete e é “gente boa”, aprende a lidar com a discriminação de outra forma.


Ler Paulo Scott me levou a O avesso da pele, de Jefferson Tenório. A história é narrada por Pedro, que, após a morte do pai, assassinado numa desastrosa abordagem policial, sai em busca de resgatar o passado da família e refazer os caminhos paternos. Ao trazer para a literatura um país (e uma cidade, Porto Alegre) marcados pelo racismo, Tenório também nos mostra um sistema educacional falido. Livro incontornável por fazer, na minha opinião, a melhor leitura sobre o Brasil contemporâneo, a partir de temas centrais.


Pausa na literatura para ler um livro sobre comunicação. Mas não um livro técnico. Desabilidade, do italiano Roberto Parmeggiani, traz uma discussão urgente sobre a crise na linguagem. Leia aqui a resenha completa.


O livro Mataram Marielle, dos jornalistas Chico Otávio e Vera Araújo, apesar de alguma imprecisão histórica, o que não prejudica o esforço da reportagem, é leitura obrigatória para quem quer entender o caso do assassinato da vereadora do Psol e as relações do crime com o sistema policial (e político) do Brasil atual.


Em 2020 conheci a obra de Maria José Silveira e, depois de Maria Altamira, decidi ler o já famoso A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas. O livro conta 500 anos de história do Brasil por intermédio de uma linhagem feminina, que parte da indiazinha Inaiá, nascida em 1500, chegando até a jovem Amanda, nascida em 2001.


Com este livro encerrei o ano mais estranho e triste que vivi. Em que as leituras, com certeza, me ajudaram a suportá-lo.

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