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Livro alerta para crise da linguagem e convida para uma vida de silêncios e palavras verdadeiras


“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty, num tom escarninho, “ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique...nem mais nem menos”.


“A questão”, ponderou Alice, “é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes”.


“A questão”, replicou Humpty Dumpty, “é saber quem é que manda. Só isso”.


Diálogo entre o ovo Humpty Dumpty e Alice (em Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, citado em Desabilidade, livro de R. Parmeggiani)



Roberto Seabra - 25/12/2020


O ano que chega ao fim pode ter sido tudo, menos hipócrita, se é que podemos dar um traço de personalidade a um espaço de tempo. Para explicar melhor o que quero dizer, vamos imaginar que 2020 seja uma pessoa. Como qualificá-lo? Normal? Não. Generoso? De jeito nenhum. Macabro? Talvez. No entanto, pensando bem, tudo o que aconteceu nesse ano foi resultado das escolhas da humanidade nas últimas décadas.


A começar pela pandemia que, como se sabe, nada mais é do que uma crise ambiental, provocada pela derrubada das florestas e do aumento gradual da temperatura do planeta, o chamado aquecimento global. Não por acaso muitos cientistas afirmam que a Covid-19 pode ser sucedida pela Covid-20 em pouco tempo, caso os países não assumam a responsabilidade de respeitar os protocolos já assinados e reduzam drasticamente a emissão de CO2 nos próximos anos.


Em resumo. A crise ambiental resultou em uma crise sanitária, que por sua vez gerou uma crise econômica, que reverberou no dia a dia das pessoas e chegamos ao final do ano a uma crise social que está apenas começando, com desemprego crescente e aumento da miséria mundial, depois de décadas seguidas de queda.


Mas além das crises ambiental, sanitária, econômica e social, que marcaram encontro em 2020, vivemos também nos últimos anos uma crise da linguagem. E sabemos que, sem a linguagem, somos quase nada, pois, ao contrário dos outros animais que dividem conosco a biosfera, o ser humano perdeu outras capacidades naturais, inclusive a de sobrevivência em meios hostis, ao super desenvolver sua inteligência e sua técnica para lidar com a natureza. Quanto mais nos desenvolvemos, mais necessitamos da linguagem para dar conta da complexidade do novo mundo que criamos a cada dia.


O livro Desabilidade, do escritor italiano Roberto Parmeggiani, é uma pequena obra de arte de pouco mais de 50 páginas que tenta discutir essa crise da linguagem e nos alertar para uma era de “fraqueza comunicativa” que começamos a trilhar. Nessa obra, o autor refunda o conceito de “desabilidade”, transportando a palavra do campo semântico da inclusão de pessoas com deficiência (onde é especialista) para o campo das relações pessoais.


Por ser um livro que se lê rápido, mas não sem estremecimentos, Desabilidade traz um brilhante prefácio de Rubens Casara que pode ser lido como uma conclusão do trabalho de Parmeggiani. Vale a pena aqui, antes de entrar na obra em si, citar um trecho um pouco mais longo do prefácio, e que nos prepara para o que vamos ler, ou ouvir.


“A dificuldade de interpretar um texto, o desaparecimento das metáforas, os discursos de ódio e a incompreensão das ironias são fenômenos que podem ser explicados a partir desse problema que leva à desabilidade: o empobrecimento subjetivo. Empobrecimento que se dá na linguagem e que leva à dificuldade de se comunicar, de compreender e de atuar em diversos contextos. A linguagem, e isso já foi dito antes, sempre antecipa sentidos. Uma linguagem empobrecida antecipa sentidos empobrecidos, estruturalmente violentos, pois se fecham à alteridade, às nuances e à negatividade que é constitutiva do mundo e se faz presente em toda percepção do que é complexo. Sentidos empobrecidos que não se prestam à reflexão e que são funcionais à manutenção das coisas como estão. Percebe-se, pois, que a desabilidade, para além de um problema da linguagem, é também um projeto político”.


Essa crise na linguagem, ou nos sentidos, virou uma desabilidade gravíssima, que pode estar arrastando a humanidade para um lugar sem volta. O trecho a seguir é do próprio Parmeggiani:


“Se quisermos que algo mude de verdade, contribuindo para construir uma sociedade mais justa e feliz, precisamos recolocar no centro das nossas reflexões a questão da linguagem.”


Sob o guarda-chuva chamado “crise da linguagem” o autor relaciona o analfabetismo funcional, que nos torna incapazes de compreender o significado de um texto; a velocidade da tecnologia e dos social network, que reduzem nossa capacidade de aprofundar um tema; e uma não educação para o silêncio e a escuta do outro.


Parmeggiani é também tradutor e viveu (ou talvez ainda viva) no Brasil, e por isso recorre a autores brasileiros para tentar explicar seu conceito. Cita Rubens Alves (“A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras”) e Paulo Freire (“A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo”). Entre o silêncio filosófico de saber ouvir de Alves e o ato humano de falar “palavras verdadeiras” de Freire, encontra-se a linguagem que deve ser recuperada, segundo Parmeggiani:


“...nossa meta como seres relacionais é nos tornar poetas, amantes das palavras, no sentido mais carnal possível, respeitando o significado de cada uma, mas, ao mesmo tempo, usando-as para ler os diferentes contextos, ampliando o sentido sem preclusão e assim enriquecendo nossas habilidades”.


Para o escritor, vivemos um período de “pobreza lexical” que estaria nos levando para a incomunicabilidade, ou para uma desabilidade no uso da linguagem que estaria arrastando a humanidade para uma era de horror. E cita a retomada de ideias racistas e fascistas como um indicativo desses novos e terríveis tempos.


“A linguagem racista, assim como a linguagem sexista ou integralista, só para dar alguns exemplos, são formas de controle e de poder (...)”


“Os negros são nomeados pela cor da pele, as pessoas gordas por seu peso, aquelas com deficiência pelo seu déficit, as mulheres por uma parte do corpo e assim por diante.”


Ou ainda:


“O uso da linguagem nunca é neutro e embora muitas vezes as pessoas se desculpem dizendo que “é só uma brincadeira”, atrás dessa atitude se esconde outra desabilidade. Não conseguimos mais distinguir uma brincadeira – que prevê um respeito de fundo e a participação, embora inconsciente, do outro – de uma humilhação – que visa ofender o outro, reduzindo seu valor para tornar maior aquele que fala”.


Desabilidade aparece num momento em que o Brasil vive uma outra crise, além das já vividas pelo restante da humanidade. Enquanto outros países seguem as orientações de médicos e cientistas para enfrentar a pandemia, aqui temos um governante que não apenas faz pouco caso da Covid-19 (apesar das quase 200 mil mortes anunciadas!), mas também inunda as redes sociais e o imaginário popular com ideias negacionistas e palavras preconceituosas, empobrecendo ainda mais a nossa já sofrida linguagem e aumentando o fosso comunicacional em que estamos metidos.


Ler o livro de Roberto Parmeggiani não gastará mais do que duas horas do nosso tempo e poderá nos ajudar a encontrar uma saída para as crises em que o Brasil parece se afundar cada dia mais.


Enfim, poderia gastar páginas e páginas aqui copiando as dezenas de trechos que grafei no livro Desabilidade. Mas além de estragar o prazer de quem for ler a integralidade da obra, eu estaria perdendo o meu tempo e o do leitor. Melhor encerrar por aqui e deixar uma citação, dessa vez do também escritor Italo Calvino, citado por Parmeggiani:


“A linguagem me parece sempre usada de modo aproximativo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que não vejam nessa reação minha um sinal de intolerância para com o próximo: sinto um repúdio ainda maior quando me ouço a mim mesmo. Por isso procuro falar o mínimo possível, e se prefiro escrever é que, escrevendo, posso emendar cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não digo a me sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de insatisfação de que me posso dar conta”.

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