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O avesso da censura


Beto Seabra - 16/03/2024




Talvez um dia será possível entender os tempos atuais, mas não por seus fatos e personagens, pois estes são fugidios desde agora, o que dirá daqui a cinquenta anos, e sim pelas versões sobre o que de fato aconteceu. Os historiadores do futuro deverão ser experts em sistemas de informações que poderão ajudar a transformar a algaravia atual em algo compreensível para quem, vivendo em um hipotético ano de 2074, quiser se debruçar sobre o que aconteceu no Brasil enquanto a extrema direita "deixava" o poder e ao mesmo tempo tramava um golpe de estado para impedir que a esquerda e aliados de centro e de direita retornassem a ele.


As decisões de secretarias de educação governadas por prefeitos ou governadores de extrema direita contra a livre circulação de alguns livros são fatos, ninguém pode negar. No entanto, o que é feito desses fatos em redes sociais e grupos de aplicativos de mensagens e mesmo em um tipo de imprensa que publica apenas um lado da questão nubla a verdade. Cheguei a ler em algum lugar que a proibição do romance O avesso da pele, do escritor gaúcho Jeferson Tenório, em escolas de ensino médio do Paraná e de Goiás, seria uma forma de "proteger os adolescentes da pornografia e do incentivo à violência". Só quem não leu ou leu mal o livro de Tenório poderia escrever isso.


Transforma-se um fato, a censura, em uma versão do que poderia ser caso ela não fosse adotada. É como se um governo de esquerda, por exemplo, proibisse os estudantes de lerem 1984, de George Orwell, por considerar o livro subversivo por ele alertar sobre a possibilidade de um estado totalitário e, ao mesmo tempo, supostamente fazer a exegese do liberalismo e do capitalismo. Ainda que, de fato, todos os meus poucos amigos de direita adorem 1984, eu não acho que quem ler o livro vai se tornar inimigo de regimes sociais democratas ou mesmo socialistas. Li o livro e não me tornei um. E permitir que qualquer um leia o livro que quiser é, afinal, um princípio liberal, ainda que os que censurem livros hoje no Brasil se considerem a favor da liberdade e alguns inclusive pertençam a um partido cuja sigla seja PL, Partido Liberal.


Censurar livros é algo tão forte e contrário aos princípios liberais, que mesmo durante a ditadura militar os generais evitavam proibir livros de autores nacionais. Havia censura deslavada à imprensa e censores da Polícia Federal do regime de 1964 proibiram centenas de músicas, filmes e peças teatrais. Mas a censura a livros praticamente não aconteceu, ou aconteceu em geral em defesa dos "bons costumes" e não por razões políticas.


Isso não quer dizer que a ditadura tenha sido benevolente com a literatura nacional. Existem outras formas de inviabilizar a arte e a cultura e a censura é apenas uma delas.


Em uma pesquisa rápida na internet é possível descobrir vários casos de governos municipais e estaduais que censuraram livros no Brasil nos últimos anos. O caso da censura ao livro de Jeferson Tenório ecoou mais talvez porque o autor seja premiado e o livro tenha sido lançado por uma grande editora. Mas não podemos esquecer que no ano passado a Secretaria de Educação de Santa Catarina mandou retirar nove livros da rede pública de ensino sem justificativa.


Existe, portanto, um projeto claro de censura, em especial a livros literários. Em um mundo dominado pela comunicação rápida e pelo transbordamento de imagens estáticas ou em movimento, é interessante que a tecnologia mais antiga, o livro, seja a principal vítima dos censores da extrema direita. Talvez eles achem, com certa razão, que quem consegue ler um livro de quase duzentas páginas por inteiro, que trate de temas tão complexos quanto relações raciais, violência urbana e negritude, deva ser, de fato, alguém a ser temido.


O fato de que o livro censurado teve suas vendas aumentadas em mais de mil por cento e de que a editora decidiu reduzir o valor de capa para incentivar que mais pessoas comprem o livro de Tenório é algo a ser comemorado, talvez como uma espécie de censura pelo avesso. Entretanto, a dor de ver que governos continuam usando seus poderes para proibir que adolescentes leiam este ou aquele livro, livros estes já aprovados por bancas de educadores, nos alerta para um futuro que poderá retornar a um estado de coisas ainda pior do que já foi.





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