Vinde a mim, criancinhas!
Marcelo Torres - 29/03/2021
Ah, Vinicius, escolhi a ti para falar do princípio da grande obra que foi a construção de Brasília. No início de outra grande obra — a Sinfonia da Alvorada, essa coisa mais linda e cheia de graça que tu e o Tom fizeram para a cidade — logo no início do poema épico de tua autoria tu dizes que no princípio era o ermo, eram as antigas solidões sem mágoa.
Aqui, no entanto, camará, sem ermo nem mágoa, permita-me voltar à gênese bíblica. Para este teu fã aqui, dúvida não há, em se tratando de Brasília, que no princípio era o verbo — e este não era outro senão o verbo vir. Ora, camará, só pode ter sido o vir mesmo, porque, vamos combinar, ô verbo desregulado é esse — doido por excelência, um trem volúvel, que varia no início e nos fins, conforme o modo e o tempo.
Eu vim, tu vieste, eu venho, tu vens. E se digo vens, camará, logo me vêm à mente os versos de uma grande poeta, que porém é esquecida: “Se vens a uma terra estranha/ curva-te/ se este lugar é esquisito/ curva-te. [...]/ és infinitamente mais estranho”. É Orides Fontela, que parece falar de Brasília. A poeta, que era um bicho fechado em concha, aqui veio um dia e se foi no outro, mas foi como se nunca tivesse vindo, pois sem nota, sem notícia, sem registro em livro de visita. Estou com ela e não abro: toda pessoa, qualquer pessoa, seja o poeta do desassossego ou o filósofo da gaia ciência, qualquer indivíduo é infinitamente mais estranho que Brasília, essa cidade que quase todo mundo chama de estranha, até mesmo os que nunca puseram os pés neste chão.
Vejas, camará, o teu amigo Drummond, que falava do tempo presente, dos homens presentes, da vida presente. Dele lembro de dois versos sobre o mesmo verbo: “Vêm da noite inquieta/ vêm de longe e murmurando" — eles (e elas, naturalmente) vêm, com chapeuzinho e tudo. Mas também lembro que teu amigo itabirano — sentado eternamente em banco de cimento, perninhas cruzadas, lá no calçadão de Copacabana, de costa para o mar — chegou a prometer em um poema: “Vou no rumo de Brasília”. Pois sabes quando é que o gauche veio, camará? No dia de são-nunca de noite, na treva da noite, aquela que quando desce, como disse ele, dissolve os homens.
E os homens vieram para cá, para estes planos altos centrais — Venha de onde vier, chegue de onde chegar —, vieram até cantando Cinderela, uns príncipes encantados, camará, talvez melhores na lábia que um certo poetinha — se me permites a infame comparação. Vieram, tu sabes mais que eu, é o verbo vir no modo indicativo, no passado perfeito — de homens imperfeitos.
Vieram: candangos, retirantes da seca nos sertões, chegando em paus de arara, com uma mala na mão e um pé-de-meia na cabeça. Vieram: caminhoneiros que, não raramente, faziam cinco viagens e cobravam cinquenta. Vieram: os barnabés do Rio, transferidos quase que amarrados, para serem aqui os piores tipos de imigrantes nostálgicos. Vieram: vários tipos de homens eleitos, para cá enviados em mandatos senatoriais de oito outonos e deputações de quatro verões. Com os congressistas, outros homens-assessores vieram.
Vieram também aqueles trazidos por concursos. Vieram outros de carona no trem da alegria. Também vieram — e esses não iam faltar — certos vendilhões de tempos e templos, para pregar palavras, aleluias e tabuletas.
— Arrependei-vos e crede no Evangelho.
— Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.
— Vieste do pó, ao pó voltarás.
Ao pó planaltino, esse chão marrom-vermelho, vieram gregos e goianos, mineiros, nordestinos. Aqui, camará, a qualquer hora do dia, todo dia, tu ouves um, Sou de Santa Rita do Passa Quatro, Minas, e outro, Eu vim de Olho d’Água das Cunhãs, estado do Maranhão, e mais outro, Moço, eu sou do sul, mas sul do Ceará, cidade de Santana do Cariri. Inclusive teve um menestrel cabeludo que para cá veio vindo lá de São Bento do Una, se anunciando no sino da catedral, fez aqui um show e logo depois, meio lobo, meio louco, estava numa mesa ali no Beirute, pediu papel e caneta ao garçom e rabiscou uns versos para uma doida dona, charmosa e tão linda: — Qual é o teu nome? — Me chamo Brasília. Aí ele soltou a voz — Agora conheço tua geografia, a pele macia, cidade morena, teu sexo, teu lago, tua simetria — para ao final rematar à nova amada: Adeus, Brasília, vou morrer de saudade.
E por falar em saudade, onde andas tu, camará? Tens visto por aí o Rosa? Rapaz, ele veio duas vezes aqui, antes de ti — aliás, ele botou os pés neste chão dois anos antes de a cidade ser dada a lume. Após a segunda vez, fez ele uma carta ao pai, o senhor Florduardo Pinto Rosa, lá de Cordisburgo relatando que “o clima [de Brasília] é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão”. Contou ao velho que “os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis, parece coisa de russos ou norte-americanos”. Ainda na carta, Rosa revelou que acordava às seis da manhã só para ver um tucano, com suas penas coloridas, “as chegadas e saídas deste pássaro eram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis da minha vida”.
E apesar disso, camará, mesmo com essas palavras, sabes o que ele fez depois? Fez um conto narrando a visita de um menino “ao lugar onde se construía a grande cidade” — só que o desfecho da história é o oposto disso que antes escrevera ele ao pai. No conto, Rosa põe um belo dum peru como feliz descoberta do garoto, mas uma hora após o menino vê que mataram o peru para o almoço do outro dia. Além da morte do bicho, o garoto começa a olhar a derrubada das árvores, e essas duas coisas o deixam abalado, com ascas, sem chão. A metáfora quer dizer: para Brasília nascer, mataram a fauna — simbolizada pelo peru — e a flora — representada pelas árvores. “Ah, mas conto é ficção”, você há de dizer, e é verdade, mas todo mundo sabe desse conto, está lá nas Primeiras Estórias, e no entanto o que ele fala na carta a seu Florduardo Pinto Rosa ninguém sabe, ninguém leu. É como ele encerra um conto chamado Desenredo: “E pôs-se a fábula em ata”. E imprimiu-se o conto, a ficção.
Mas voltemos ao verbo, camará. Além de tu e do Tom, por aqueles dias antes e após a fundação, aqui vieram André Maulraux, John dos Passos, Elizabeth Bishop, Bioy Casares, Clarice Lispector, Frank Capra, Fidel Castro, Dwight Eisenhower, Yuri Gagarin, Che Guevara, Zélia Gattai, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Cyro dos Anjos, Aldous Huxley e sua mulher, a violonista e cineasta italiana Laura Huxley e Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, entre muitos-muitos outros.
Agora, camará, se também é verdade que Brasília é a cidade do desvio, que ela é a terra do surrupio, como dizem e redizem os brasileiros — cento e tantos milhões — então, lá atrás, bem no princípio, Brasília deve ter metido a mão-grande na Bíblia, e de lá tenha furtado, de lá tenha afanado uma frase, a famosa frase dos evangelhos, aquela que diz,
Vinde a mim as criancinhas.
Não teria sido este, afinal, o chamado feito por Jesus conforme contam seus biógrafos, os apóstolos Marcos, Lucas e Mateus? Pois então, séculos e séculos depois, nos anos cinquenta, nos cinquenta anos em cinco, e antes mesmo de nascer, a ladra deve ter corrompido esse trecho dos evangelhos, tirando artigo e botando vírgula, para a frase ficar assim:
Vinde a mim, criancinhas.
Só pode ter sido este o chamado, o anúncio feito aos quatro ventos, daqui destes centrais planaltos de solidão. Porque, Vinicius, para cá só vieram crianças: umas custosas, outras inocentes, essa de chupeta, aquela de chapéu, as risonhas, as choronas, crianças de todos os tipos e idades. Ela mesma, Brasília, virou sessentona, mas ainda criança, já com três milhões de almas — embora a madame Beauvoir tenha vaticinado que ela jamais teria alma nenhuma. Enfim, amigo, se no princípio era o verbo, no meio devem ter corrido uns contos, e no fim — porque o fim sempre coroa a obra — no fim das contas, foi mesmo a verba. Verba docent, exempla trahunt — as palavras movem, os exemplos arrastam. Então, camará, eu só digo uma coisa: goste-se ou não, para o bem ou para mal, Brasília é Brasil — em latim — verbum pro verbo, conforme diria Cícero, palavra por palavra, ao pé das letras.
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