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Torturado


Beto Seabra - 19/01/2023



Pinheiro Salles, em lançamento do livro no Sindicato

dos Jornalistas em Goiânia

Recebi o envelope amarelo pelos Correios, com meu nome e endereço escritos em letra tremida, mas ainda assim bem desenhada e com ornamentos de quem aprendeu a escrever muito antes do advento da informática. No verso, o remetente: um certo Pinheiro Salles, residente no setor Jaó, em Goiânia.


Dentro do envelope três exemplares do mesmo livro “Ninguém pode se calar: depoimento na Comissão Nacional da Verdade”, produzido em 2019 pelo Sindicato dos Jornalistas de Goiás e a Editora Kelps, coincidentemente a mesma que editou o livro do meu saudoso avô, o jornalista Geraldo Seabra.


Capa vermelha, letras em amarelo e uma fotografia borrada de um par de coturnos, localizada acima do título e abaixo do nome do autor, o próprio Pinheiro Salles. Na contracapa, comentários sobre o livro assinados pelo advogado José Carlos Dias, ex-ministro de Direitos Humanos do governo FHC; Laurenice Noleto Alves, viúva de ex-preso político, jornalista e escritora; e pela advogada Rosa Maria Cardoso. E é desta última o trecho que escolho para ilustrar o conteúdo da obra que me chegou pelo envelope amarelo:


“Arrancaram-lhe os dentes, fraturaram-lhe as mandíbulas, estouraram seus ouvidos, esgarçaram seus pulsos, puseram-lhe bucha de Bombril no ânus, para ali e no pênis descarregarem choques elétricos. Arrebentaram-no impiedosamente, tanto em Porto Alegre, sob o comando do delegado Pedro Seelig, como no Dops de São Paulo, em mãos da equipe de Fleury, e dele próprio, e no DOI-CODI, sob orientação do comandante Ustra, o ‘Major Tibiriça’.”


Ler sobre torturas é sempre um exercício de empatia.


Mas vou ao dicionário de Tupi Guarani para descobrir a origem da alcunha escolhida por Carlos Brilhante Ustra, o herói de Bolsonaro, para se esconder de suas vítimas. Tibiriça significa “o vigia da terra”, e foi também o nome de um cacique indígena que se aliou aos portugueses para combater seus iguais, povos indígenas de outras tribos. Faz sentido a escolha.


Voltando ao livro e seu autor, me sento para começar a leitura da pequena brochura de 122 páginas que traz uma longa entrevista de Pinheiro Salles à Comissão Nacional da Verdade. Em certo momento do depoimento, perguntado pelo jornalista Daniel Lerner se ele havia sido torturado por Ustra, Salles responde:


“Certamente, ele me torturou. Mas não vem ao caso. A gente não tem uma visão completa na sala de torturas, principalmente quando está pendurado no pau-de-arara, de cabeça para baixo”.

E foram nove anos passando por celas e torturas entre 1970 – quando foi preso, ou sequestrado, como Pinheiro Salles prefere enfatizar, em Porto Alegre, por pertencer à Organização Marxista Política Operária (Polop) – e 1979, quando foi libertado em São Paulo.

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo em 2020, Pinheiro Salles narra o que sofreu nos porões da ditadura militar. Me chama atenção, na entrevista de página inteira, o que ele diz sobre a obsessão dos torturadores pelos órgãos genitais dos presos políticos.


“Nas mulheres cortavam os seios com alicates. A mãe de uma companheira ficou com a bexiga e o útero expostos. De uma maneira ou de outra, os órgãos sexuais são recantos privados, ligados à intimidade, vontades pessoais. A agressão direcionada era uma maneira de atacar isso. Tanto que a primeira coisa que faziam era tirar a roupa dos presos.”


Isso me faz lembrar que no período em que a extrema direita ocupou o poder no Brasil, entre 2019 e 2022, o mandatário e seus ministros gostavam de falar sobre o tema do sexo, mas sempre de forma deturpada, com o uso de termos como “golden shower”, “dar um furo”, “país de maricas”, “chega de frescura e mimimi”, “ditadura gay”, só para citar algumas lembranças. A mesma obsessão, durante a ditadura e no passado recente, diz muito sobre que tipo de gente é essa.


Em um dos trechos mais terríveis do livro, Pinheiro Salles narra o momento em que foi torturado pelo próprio delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, um dos mais temíveis verdugos da ditadura.


“Levaram minha cabeça de encontro à parede como se o meu corpo fosse um aríete com que tentassem derrubar uma muralha. Já estava ensanguentado quando começaram a me amarrar para o pau-de-arara, retirando outro preso para que eu ocupasse seu lugar e seu martírio. (...) O Fleury entrou na sala. Chamou o Tralli (o agente João Carlos Tralli) a um canto. Comunicou-lhe alguma coisa junto ao ouvido. Retornou, pôs um pé sobre meu peito, forçou-o para baixo e se afastou. Voltou imediatamente, observou a minha agonia. Deu um forte chute em minhas nádegas, atingindo os testículos, que, naquela minha posição, ficavam expostos na parte de trás das coxas (a dor foi tão intensa, que me deixou todo gelado e molhado com um suor também gelado). Ele se foi, com a tranquilidade de um torturador e assassino experiente.”


Não conheço pessoalmente Pinheiro Salles. Nossas trajetórias se cruzaram por causa dos nossos livros e de uma amiga virtual, a professora e escritora Diane Valdez, da Universidade Federal de Goiás (UFG). Também militante, feminista e filha de preso político do Mato Grosso do Sul, que morreu em consequência da ditadura em 1970, Diane está escrevendo a biografia de Pinheiro Salles desde o ano de 2008. Ela entrevistou mais de quarenta pessoas do círculo familiar na Bahia e Minas Gerais, e militantes e camaradas que também foram presos. Pretende publicar a biografia de Pinheiro Salles ainda este ano.


Pinheiro Salles leu “Silêncio na cidade”, onde narro o assassinato de uma criança de sete anos em Brasília, no ano de 1973, seguido pelo acobertamento do crime pela ditadura militar, e me fez chegar seu livro. Ficção e realidade se misturam no meu romance. Realidade, dor e coragem formam a matéria prima do livro de Pinheiro Salles.


Ele nunca se entregou aos algozes. Ficou nove anos na prisão de bico fechado, sofrendo em silêncio, emitindo apenas gritos, lamentos e palavrões. Saiu de lá um trapo de gente e passou por inúmeras cirurgias para tentar recuperar sua saúde.

No dia 8 de janeiro de 2023 uma turba de extremistas de direita invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes em Brasília para pedir a intervenção militar e o fim da democracia. Centenas deles foram presos, mas nunca serão torturados. Essa é, talvez, a diferença mais marcante entre o inferno vivido por Pinheiro Salles e o império da lei que vivemos hoje.

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