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Sapatos

Beto Seabra - 08/10/2023



Volto apressado para pegar o carro no estacionamento, pois os chopes bebidos, não muitos, são suficientes para exigir pressa. Sabemos que a vontade de ir ao banheiro está diretamente relacionada à proximidade do local onde iremos esvaziar a bexiga. Caso típico onde se misturam psicologia e fisiologia.


Mas uma cena me faz parar no caminho e adiar a vontade. Um par de sapatos, abandonado, descansa displicente em um banco de praça. Na verdade não chega a ser uma praça, é apenas um banco em semicírculo que tenta dar ao lugar ares de urbanidade.


E o lugar parece ter servido ao intento de sua criação, pois atraiu para lá a mulher e os sapatos são claramente femininos, no tamanho e no desenho.


Depois me deixo levar por outros pensamentos. Talvez não exista mulher alguma. Os sapatos podem ter sido dispensados e achados por um catador de lixo ou outra pessoa qualquer, e quem os encontrou os deixou em algum lugar um pouco mais à mão: saiu do container de lixo e foi parar num banco de praça.


O pensamento foge novamente. Imagino logo coisas horríveis, algum tipo de violência que separou a dona dos sapatos de seu calçado. Mas pelo lugar onde estão e a forma pacífica em que estão ordenados, talvez não tenha ocorrido cena violenta alguma. São apenas objetos largados e que apenas me chamaram a atenção por serem sapatos, estarem em um banco e serem femininos.


Faço uma foto deles (já pensando nesta crônica?) e prossigo o meu caminho, pois a bexiga voltou a reclamar.


Quando estou deixando a quadra vejo uma andarilha, descalça, que busca nas lixeiras latas de alumínio (na outra mão dela há um saco carregado de latas). Penso novamente nos sapatos. Mas a andarilha-catadora é enorme, diria que vejo um ser gigante, muito magra e muito alta. Aqueles sapatos não caberiam naqueles pés enormes, talvez sofridos, rodados e espraiados no asfalto.


Estaciono o carro e fico olhando para ela, que trabalha separando as latas do restante do lixo imprestável. Ela parece ter notado a minha atenção. Empertigada, levanta uma latinha para o alto e grita: saúde! E em seguida dá uma gargalhada. Eu apenas sorrio, aceno para a minha semelhante de pés descalços e sigo o meu caminho, com pressa de chegar ao banheiro mais próximo.










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