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O senador, o deputado e o ladrão de joias

Beto Seabra - 09/03/2023

Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados




Na década de 1990 conheci um político, que depois se tornaria meu amigo, que sempre ficava furioso com o modo como a grande imprensa usava, e ainda usa, certas palavras para noticiar os maus feitos.


Certa vez ele me chamou de lado e mostrou a capa de um jornal e perguntou: “Meu amigo, por que quando um pobre rouba, é roubo, mesmo que seja um pão? Mas quando um rico rouba, mesmo sendo milhões, eles chamam de desvio? Desvio para mim é em estrada”.


Dei razão a ele e aquela nossa primeira conversa sobre os eufemismos usados pela mídia corporativa para tratar dos crimes cometidos pela elite selou uma amizade que já dura quase quarenta anos.


Esse amigo na época era deputado distrital (o equivalente no DF ao deputado estadual). Por ser um homem de origem humilde, e negro – ele foi líder comunitário nos anos 1970 – nunca se habituou ao ambiente da grande política. Era sempre um gauche, onde quer que estivesse. Talvez por isso tive uma identificação imediata com ele.


Lembrei esta semana desse amigo, que largou a política e foi morar com a companheira em um pequeno sítio no interior de Goiás para criar galinhas, plantar couve e observar os pássaros do Cerrado intocado ao redor deles.


Mas antes de deixar o Parlamento, é preciso dizer que esse amigo teve uma passagem pelo Senado Federal, pois ele era suplente de um senador da República que foi indicado para um alto cargo no governo federal. Se ele já se sentia um gauche na assembleia distrital de Brasília, imaginem no Senado, onde até as pilastras têm um ar grave e senhorial.


Até hoje quando o encontro o chamo de senador, entre o respeito e a troça, pois sei que ele prefere mil vezes conversar com os caipiras do interior de Goiás ou com as árvores do seu sítio do que com os nobres representantes do nosso parlamento.


Voltei a lembrar do senador, repito, em razão das notícias que li esta semana sobre o caso do deputado federal mineiro da extrema direita que subiu à tribuna quando o plenário votava projetos pertinentes ao Dia Internacional da Mulher (8 de março) com uma peruca loira e enxovalhou a existência de mulheres transexuais. Sua agressão verbal foi transmitida ao vivo pela TV Câmara e repercutiu em todo o país.


Talvez ele não soubesse que as pessoas trans tenham a mais baixa expectativa de vida da escala social (27 anos). Quando não são mortas em razão do preconceito, resolvem elas mesmas tirar a própria vida. Dos 513 deputados federais eleitos em 2022, dois são transexuais. E foram elas o alvo do deputado exibicionista.


O problema é que o que deputado cometeu foi um crime. Um crime muito grave, aliás. Desde 2019 que a suprema corte brasileira definiu que a homofobia se equivale ao crime de racismo. Mas o que vi nas manchetes da imprensa foi, mais uma vez, um exemplo de eufemismo para os crimes cometidos por representantes da elite. Vi dezenas de manchetes e em nenhuma delas li a palavra crime.


Fico imaginando se um qualquer caísse na esparrela de ofender uma madame ou um rico banqueiro usando um meio de comunicação qualquer. Seria tratado como criminoso, claro. E não digo isso à toa. Em rápida pesquisa na internet descubro matéria de um site sobre a ofensa de um homem a uma prefeita e que foi publicado com o título correto: “Homem é condenado pelo crime de calúnia contra a prefeita Cinthia Ribeiro” (prefeita de Palmas, capital de Tocantins).


Veja que o crime de calúnia é bem menos grave do que o crime de racismo, ou homofobia, no caso em questão do deputado federal. No entanto, a imprensa tratou o crime menor (calúnia) da forma correta, e o crime maior (homofobia), de forma eufemística.


O mesmo tratamento vale para a forma como a imprensa trata as denúncias contra o ex-presidente que tentou reaver R$ 16 milhões em joias que entraram de forma ilegal no País. Li dezenas de vezes na imprensa a palavra “presente”, em referência ao caso, quando todos sabemos que é ilegal um governante receber recursos vultosos de países estrangeiros, seja em dinheiro, joias ou qualquer outra coisa. Isso não é presente, mas outra coisa.


Nessas horas entendo porque o meu amigo senador trocou os impropérios ditos no parlamento – e tratados de forma leniente pela Justiça e eufemística pela imprensa – pelos cantos dos pássaros do Cerrado.



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