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La mano sinistra!

Beto Seabra - 25/01/23 - Ilustração de Cacá Soares


Sempre fui um fracasso nas artes manuais. Quando criança, adorava soltar pipas, mas a minha quem fazia era um amigo. Minha participação era apenas cortar e amarrar as tiras de papel da rabiola. Invejava os meninos que construíam os mais incríveis carrinhos de rolimã, até que um dia um colega da escola, que ajudei na véspera para uma prova de matemática, passou uma tarde de sábado comigo e, juntos, mais ele do que eu, fizemos o meu primeiro brinquedo-veículo.


Outra coisa que eu adorava, mas não sabia fazer bem, eram as bolas de meia. No período chuvoso de Brasília, quando as brincadeiras aconteciam nos pilotis ou no corredor do bloco (e na quadra onde passei a infância os corredores são gigantes), a bola de meia virava a principal estrela dos jogos das crianças. Tínhamos até campeonato dessa variedade de futebol. Uma dezena de garotos descalços, a superfície do chão lisa e quatro chinelos para marcar os gols eram o suficiente, além da bola, claro, para organizar uma boa pelada.



Uma bola de meia bem-feita, nem muito dura, nem muito mole, e que nunca desmanchasse, era considerada uma joia pelas crianças. Até hoje, se vejo uma bola de meia, a minha vontade é parar o que eu estiver fazendo e me misturar aos pirralhos para jogar.


Essas brincadeiras que exigiam de nós habilidades manuais para a confecção dos brinquedos faziam parte do aprendizado lúdico, mas também, de certa forma, do treinamento para o mundo do trabalho. Não por acaso aquele meu colega de escola que ajudou a construir o meu primeiro carrinho de rolimã era o filho do sapateiro. E que o filho de uma costureira, meu amigo e vizinho de bloco, era o melhor fazedor de bolas de meia.


Meu pai era perito criminal e minha mãe passou por diversas profissões antes de virar advogada, mas nenhuma que exigisse grandes habilidades manuais. Cresci em um ambiente amoroso, mas teórico, digamos assim, com vocação para os estudos e certo incentivo ao conhecimento tecnológico das coisas, talvez levado pelos presentes que meu pai trouxe dos Estados Unidos quando lá esteve a trabalho, no final dos anos 1960: entre eles uma máquina fotográfica de brinquedo e um gravador de fita de rolo que nos deslumbravam.


Hoje me ressinto dessa falta de habilidade manual para fazer coisas. Não sei costurar, sou um fracasso em desenho e outras técnicas artísticas, não toco nenhum instrumento e até para cortar um pedaço de papel eu tenho dificuldades. Como sou canhoto, o que talvez explique em parte o desastre, costumo dizer que não sou ambidestro, como alguns felizardos, mas sim ambisinistro.


Na falta de quem responsabilizar pelo meu desmazelo, decidi botar a culpa na freira instrutora da primeira escolinha onde estudei, ainda no jardim de infância. Certo dia cheguei em casa reclamando à minha mãe que a professora não me deixava desenhar e escrever com a mão esquerda. La mano sinistra!, diriam os italianos. Para os católicos mais ortodoxos, ser canhoto era um defeito diabólico, que deveria ser reprimido a todo custo. Minha mãe foi até a escola e reclamou com a freira, que preferiu deixar de ver o meu ‘defeito’ a perder o aluno.


Sempre achei que aquele modelo de repressão havia prejudicado meus dotes manuais para as artes e outros ofícios, ao atrasar o meu aprendizado em certas habilidades, mas nunca levei muito a sério essa história. Foi então que, conversando com um conhecido dias atrás, nos vimos os dois canhotos e da mesma geração. Ao final da conversa, perguntei a ele com o que trabalhava.


- Sou aposentado. Mas antes fiz de tudo, mas por ser canhoto, não consegui realizar meu grande sonho de ser músico.


- Mas existem músicos canhotos, respondi, lembrando o mais famoso deles, o Beatles Paul McCartney.


- Sim, é verdade. Mas eu gostava de violão, e para canhoto tocar violão era preciso inverter as cordas, o que meu irmão mais velho nunca deixou eu fazer.


Além de dono do violão, o irmão dele era destro. Me senti profundamente solidário ao novo amigo, canhoto e sofredor.

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