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Amor e guerra, vida e morte em Meio sol amarelo

Maria Amélia Elói - 13/06/21



Feliz independência. Ele queria pedi-la em casamento. Era um novo começo, um novo país, o novo país deles. E não só porque a secessão era justa, tendo em vista tudo que os igbos aguentaram, como também pelas possibilidades que Biafra teria para ele. Ele seria biafrense de um jeito que jamais poderia ter sido nigeriano – estava ali desde o início; tinha partilhado o parto. Faria parte. E repetiu Case comigo, Kainene várias vezes na cabeça, mas não conseguiu dizer em voz alta.


Dizem que as resenhas de livros não devem conter muitos adjetivos. Que o crítico literário deve ser racional e atentar para aspectos significativos do texto, sem deixar de dialogar com o contexto e as riquezas intertextuais. Não convém ao analista se derreter em elogiozinhos piegas. Pois bem. Como isto aqui não é exatamente uma resenha e, ainda bem, eu sou apenas uma leitora despretensiosa, posso me derramar como eu bem entender, declarando, assim, apaixonadamente: o romance Meio sol amarelo, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (‎Companhia das Letras, 2017, 504 páginas), é um livro quente, bem temperado e necessário, costurado com maestria. Ganhador do Prêmio Orange de Literatura, um dos mais importantes prêmios do Reino Unido para a ficção escrita em inglês, o livro foi adaptado para o cinema em 2013.



Quem me indicou a obra foi a querida Dayse Muniz, professora e doutoranda aplicada, que lê e estuda a deusa Chimamanda há tempos, coordenadora do clube de leitura #leiaemcasa, do qual participo. Dayse já havia recomendado o conto “Uma experiência privada”, publicado por Adichie no livro No seu pescoço, sobre o qual conversamos num dos encontros do clube Lendo Contos, da TAG Águas Claras. Nas duas histórias, entrelaçam-se perfeitamente a esfera pública da complexa Nigéria e as relações privadas que os personagens, de origens diferentes, constroem. O romance Meio sol amarelo só veio reforçar em mim o desejo de ler mais Chimamanda e de conhecer outros autores africanos. (Já assistiram ao TED “O perigo de uma única história”, proferido pela autora? Um show!


Cerca de um quarto dos alunos da sua classe apareceu. Ela ensinou a eles o significado da bandeira biafrense. As crianças se acomodaram em tábuas, sob o fraco sol da manhã que jorrava pela sala sem telhado, enquanto ela desembrulhava a bandeira de pano de Odenigbo e contava a eles o significado dos símbolos. O vermelho era o sangue dos parentes massacrados no Norte, o negro era em sinal de luto pelos mortos, o verde era pela prosperidade que Biafra teria, e, por fim, o meio sol amarelo, que significava um futuro glorioso.


Meio sol amarelo é um romance de ficção baseado na guerra civil Nigéria-Biafra, acontecida nos anos de 1967 a 1970. Ela narra como aconteceu o golpe separatista do povo igbo (do Sudoeste da Nigéria), o contragolpe do povo hauçá (muçulmanos do norte), a rendição e a reintegração da província de Biafra à Nigéria. A obra é narrada alternadamente sob três pontos de vista, sem seguir o tempo linear: ora a história é contada pela bela Olanna, apaixonada pelo professor nacionalista Odenigbo; ora pelo jornalista branco britânico Richard, namorado de Kainene, irmã gêmea não idêntica de Olanna; ora pelo garoto Ugwu, fiel empregado de Odenigbo.


A história se passa em várias cidades nigerianas, como Nsukka, onde mora Odenigbo e funciona a universidade em que ele e Olanna trabalham; Port Harcourt, onde Kainene administra negócios do pai, como a fábrica de cimento e os investimentos em petróleo; Lagos, onde os pais de Olanna têm residência; e Umuahia, que foi a capital biafrense durante a tentativa de secessão e criação da república independente de Biafra. Durante a guerra, os personagens vão fugindo de suas cidades e se deslocando para outros lugares, à procura de segurança e de alimentos.


A obra é recheada de temperos, costumes, crenças e tradições e destaca a riqueza social, histórica e cultural da Nigéria, além dos conflitos territoriais por conta do petróleo. De família rica, Ollana e Kainene fizeram universidade na Inglaterra. Nos encontros na casa de Odenigbo, nas relações e nos diálogos dos personagens principais com intelectuais, empregados, familiares, revolucionários, religiosos, refugiados e militares, vem à tona a pluralidade de povos e de idiomas, como o inglês, o igbo, o hauçá e o ioruba, e também de dialetos.


O recrudescimento dos conflitos toca os leitores. A guerra invade e transforma radicalmente as vidas dos personagens. O idealismo e a esperança de um novo país mais justo e mais humano vão se esvanecendo. Os hauçás, bem mais militarizados, trucidam os igbos. Os alimentos, a gasolina e os produtos de higiene ficam escassos, supervalorizados. O mercado paralelo de produtos, as injustiças, o ódio e o abuso de poder se impõem. Os limites do respeito e da ética se dissolvem. A fome, a sede e as doenças (como a Kwashiorkor, desnutrição severa) avançam sobre as crianças. Adolescentes se tornam soldados e vão para as frentes de batalha sem treino nenhum. Não há emprego, não há dinheiro. Mães tentam salvar seus filhos nos campos de refugiados. Bombas explodem, corpos se despedaçam, constroem-se bunkers, meninas são estupradas, pessoas desaparecem, famílias se separam... As cenas são táteis, vívidas, têm cor, cheiro, som, sabor de sangue. O horror da guerra só não é maior que o desejo de sobrevivência.


O que mais me encanta na obra é que, mesmo abordando tema histórico tão denso e espinhoso, Chimamanda nunca se esquece da humanidade de seus personagens. Descritos de forma não maniqueísta, eles se tornam muito íntimos dos leitores durante a leitura. Olanna, Kainene, Odenigbo, Richard e Ugwu, além de alguns personagens secundários, são apresentados em sua intimidade, com suas virtudes e fraquezas. Amor, desejo, confiança, coragem, ciúme, traição, insegurança, responsabilidade, caridade, perdão, pertença em cenas e diálogos ágeis e cativantes. Casamento, laços de família, maternidade, machismo, virilidade, busca pelo saber, sentimento de nação, luta, luto... tudo tratado com muita propriedade. Literatura viva e universal.


A imprensa internacional demorou a noticiar o massacre. A ajuda exterior não apareceu a tempo. Houve a omissão de muitos países. A Grã-Bretanha e a Rússia apoiaram os hauçás. Tudo isso tornou a guerra mais violenta e demorada. Fala-se em 1 milhão e em até 2 milhões de mortos no confronto, em sua grande maioria igbos. Adichie registra, com sua prosa potente, a memória de seu povo. Histórias de Biafra importam. Vidas nigerianas importam. Que nós nunca nos esqueçamos.


— O senhor ainda está escrevendo aquele seu livro, sah?

— Não.

— O mundo estava calado enquanto nós morríamos. É um bom título.

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