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Escolas militarizadas são gambiarra educacional, aponta livro de jornalista


Beto Seabra - 01/02/23



Procure encontrar pelo menos um artigo científico assinado por algum educador ou educadora que defenda a experiência pedagógica das escolas militarizadas. Tentou? Encontrou alguma coisa? Claro que não, pois não existem.


O escritor e jornalista Dioclécio Luz, pernambucano radicado em Brasília desde os anos 1980, fez o mesmo caminho há alguns anos. Assustado com o crescimento do modelo que transforma escolas públicas do Distrito Federal em Escolas Militarizadas (EMIL), Dioclécio começou a estudar melhor o assunto:


“...não encontrei um só artigo científico, um paper, uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado que faça a defesa desse modelo de escola. Se é assim, se esse modelo não é reconhecido por nenhum educador sério do país, por que dirigentes dessas escolas, secretárias (os) de educação, municipais e estaduais, aceitaram?", escreve ele no início do livro.


Após longa pesquisa e entrevistas com educadores, estudantes e pedagogos, ele reuniu o material no livro A Escola do Medo: vigilância, repressão e humilhação nas escolas militarizadas (Tanto Mar Editores, Brasília, 2022, 412 páginas). Para o escritor, a proposta de Escola Militarizada é uma grande mentira, um imenso engodo estatal. “A escola deixou de ser escola para se tornar um misto de quartel ou presídio infantil. A Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros fizeram-se donos do espaço educacional e as crianças foram convertidas em seus soldadinhos de brinquedo. Acatar essa bizarrice, essa gambiarra, é decretar o fim de todos os estudos sobre educação já feitos no mundo”, continua Dioclécio na apresentação do livro.


Para a professora Catarina Santos da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), em entrevista a Dioclécio, sendo a pedagogia um processo que pensa a educação, é possível haver diferentes pedagogias. No entanto, “o que a Polícia faz? Ela leva para a escola a pedagogia do quartel; porque o quartel tem seus processos formativos diferentes da nossa perspectiva”, disse ela.


E o que é essa pedagogia, segundo Catarina Santos? “É a pedagogia da hierarquia, da ordem, a partir da obediência aos comandos; é a pedagogia do controle, da uniformização, do castigo, da lógica da punição. As normativas que são aplicadas nessa escola fazem com que tudo aquilo que faz da escola uma escola, praticamente, não possa acontecer”.


Não à toa que para alguns educadores o sistema das EMILs lembra o modelo medieval de educação, quando as crianças ainda eram vistas como adultos em miniatura. Antes da Idade Moderna, como nos mostrou o historiador francês Philippe Ariès em seu monumental História Social da Criança e da Família, as crianças a partir de uma certa idade, se vingassem, eram introduzidas diretamente na vida produtiva da família e da comunidade, sem passar por um período de amadurecimento, o que aconteceria nas escolas e jardins de infância.


Em seu livro Dioclécio Luz argumenta que além de medieval, o modelo das EMIL é também segregacionista. “A militarização das escolas é uma vergonha para a humanidade. Esse modelo atinge, principalmente, os jovens de baixa renda, os pobres, isto é, negros, pardos e indígenas”, escreve.


O autor acredita que as EMIL partem de um pressuposto racista e segregacionista: “Como esse jovem vai se tornar um criminoso mesmo, o melhor é se adiantar e colocá-lo num espaço onde é vigiado e punido pela Polícia. Sim, os meninos e meninas da periferia são vigiados e punidos pelos crimes que podem um dia cometer! ”, escreve ele.


Para Dioclécio Luz, a ideia das escolas Militarizadas é tão absurda, que em algum momento os autores e promotores dessa proposta vão sumir do cenário político. “Mas o dano já terá sido grande. Quantos jovens terão desenvolvido transtornos mentais por serem obrigados a se comportar como soldadinhos? ”, pergunta ele.


O ex-secretário de Educação Rafael Parente, que participou da implantação inicial das EMIL mas que depois se afastou do cargo e chegou a se apresentar como candidato ao governo do DF, em disputa contra o governador atual, é um dos entrevistados do livro de Dioclécio Luz. Ele lembra que muitas famílias apoiam o modelo cívico-militar, por representar mais segurança para as crianças e adolescentes. Mas essa segurança, como ele próprio reconhece e o livro mostra, é uma falácia.


Primeiro porque o papel da Polícia é garantir a segurança pública da comunidade, da cidade, e não apenas da escola. Segundo, porque esse modelo de colocar PMs para cuidarem da disciplina de estudantes causa danos maiores ao desenvolvimento das competências das crianças e dos adolescentes, como explica Parente:


"...teve um Nobel da Economia que comprovou, por A+B, que o desenvolvimento de competências socioemocionais é tão importante quanto aprender linguagens, matemática e ciências". E completa o ex-secretário de Educação: "Se eu estou em um ambiente em que me sinto constrangido, isso, com certeza, afeta minhas emoções, me cria medo. E a geração do medo de me expressar enquanto pessoa humana vai afetar o restante da aprendizagem".


Dioclécio Luz vai mais longe e afirma que as EMILs são, na verdade, quartéis camuflados de escolas: "O governo e a PM criaram manuais, regimentos, regulamentos, normas e até um brasão para as Escolas Militarizadas do Distrito Federal. O objetivo dessa parafernália era dar legitimidade institucional e legal, criando uma embalagem simbólica para a gambiarra educacional", acusa o jornalista.


Segundo a Agência Brasília, a página de notícias do Governo do Distrito Federal, o DF tinha no ano passado 15 escolas cívico-militares, atendendo cerca de 15 mil alunos. Com o afastamento temporário do governador Ibaneis Rocha e a não reeleição de Jair Bolsonaro (fiador desse modelo de escolas militarizadas), não se sabe se o esquema das EMIL terá continuidade a partir de 2023.


Quem sabe a leitura do livro de Dioclécio possa livrar a escola pública de Brasília - que foi pensada por Anísio Teixeira e já serviu de modelo para o resto do país - de mais uma aventura inconsequente e perigosa.

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