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A saga da família Karl Marx e as ideias que mudaram o mundo

“Deve haver algo de podre no cerne de um sistema social que aumenta sua riqueza sem diminuir sua miséria”. Karl Marx

Roberto Seabra - 29/01/2019

Terminada a leitura das quase novecentas páginas de “Amor e capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução”, da escritora norte-americana Mary Gabriel, temos a sensação de haver feito um voo panorâmico sobre a história do século 19 e, ao mesmo tempo, ter conhecido personagens reais de um grande romance de época.

O livro tem essa capacidade de unir o conhecimento histórico à fruição literária. E, de quebra, ainda nos dá uma aula sobre economia política, passeando pelas ideias de Marx e Engels, entre outros pensadores do oitocentos.

Incompreensível para a maioria dos leitores (só sua obra prima “O capital” possui 4 volumes e a densidade de uma montanha de granito), Karl Marx aparece aos olhos dos apreciadores do livro de Mary Gabriel como alguém de carne e osso, e não o monstro sagrado e inacessível traduzido por seus seguidores, os marxistas de ontem e de hoje.

Ao relatar a saga da família Marx, a biógrafa Mary Gabriel mostra a influência de Jenny von Westphalen, que se casou com Marx quando ele ainda era apenas um jovem promissor, no percurso intelectual do marido. Ao final da leitura, ficamos com a impressão de que, sem Jenny, dificilmente haveria Marx. Pelo menos o Karl Marx que a história conheceu.

Mais do que uma companheira, ela sacrificou tudo, em alguns momentos a própria saúde e a dos filhos, para permitir que Karl escrevesse sua obra prima. Em uma das cartas que Jenny Marx escreveu ao marido, ela é enfática na defesa dos ideais que os uniam: “Nesses tempos difíceis, você precisa ser firme e não abaixar a cabeça. O mundo é dos corajosos.”

Mas o livro de Mary Gabriel é mais do que isso. A narrativa familiar aparece como uma espécie de argamassa que une a história do século 19 ao pensamento formulado por Marx. Falar apenas da aventura que foi escrever a obra mais importante do pensamento social dos últimos duzentos anos, sem abordar os sacrifícios que essa aventura causou aos personagens envolvidos, não traria ao leitor ou leitora a sensação de empatia com os Marx.

Sofremos com a saga e conhecemos cada detalhe – sórdido ou heroico – dos homens e mulheres que viveram um dos períodos mais ricos da história universal. O livro nos permite entender porque surgiram, justamente no século 19 e no seio da família Marx, as ideias que iriam dominar os séculos seguintes (ou ainda hoje não discutimos o que é ou não é ser comunista?).

Não vou citar detalhes da narrativa para não estragar o prazer da descoberta e não tornar a leitura desta resenha enfadonha. Mas acho importante mostrar aqui como as ideias de Karl Marx ainda são importantes para explicar o mundo de hoje. E a forma como Mary Gabriel mostra o desenvolvimento de tais ideias, sempre conectadas aos acontecimentos históricos, facilitam o entendimento das mesmas.

Da política à economia

Os primeiros escritos de Marx publicados foram na forma de artigos jornalísticos. Chefe de reportagem de um jornal liberal - o Rheinische Zeitung – da Prússia, Marx decide abordar em sua estreia o tema da pobreza e da justiça. Ele analisa a decisão do governo prussiano de tornar crime a coleta de madeira morta para aquecimento doméstico. Pela tradição, os pobres podiam coletar a lenha em florestas particulares, para sobreviver durante o inverno.

Mas a partir de 1840 os fornos das indústrias passaram a pagar por essa lenha, o que levou os donos dos bosques a pressionarem o governo para proibir a coleta. Resultado: de cada seis processos judiciais na Prússia, cinco eram por “roubo” de lenha.

Mary Gabriel explica como essa realidade influenciou Marx. Ele “utilizaria a própria linguagem da lei para miná-la, expondo o absurdo e a hipocrisia de um sistema que permitia que o dono da terra reivindicasse o que Marx chamava de dádivas da natureza”. Em carta a Engels, anos depois, ele diria que aquela experiência no jornal o levou “da política pura e simples às condições econômicas, e assim ao socialismo”. Ou seja, a pesquisa que Marx empreendeu para escrever os primeiros artigos, segundo Gabriel, “despertou nele a ideia de que as relações entre os homens eram fundamentalmente materiais, ou seja econômicas”.

Livre comércio

Anos depois, em sua passagem pela Bélgica, depois de atacar a exploração dos pobres pelos ricos em conluio com o Estado (lembrar que quem dominava o poder na Prússia eram os nobres endinheirados), Marx voltou sua artilharia contra o “livre comércio”. Enquanto todos defendiam esse sistema como algo inerente aos novos tempos, ou seja, como símbolo da modernidade, Marx disse que era o contrário.

Ele via o livre comércio como a “liberdade do capital de esmagar o trabalhador”. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, em palestra para líderes dos trabalhadores, ele defendia esse modelo, pois, segundo ele, somente com total liberdade a indústria iria florescer, aumentar a exploração e acelerar a transformação social que levaria ao socialismo.

O filósofo alemão foi acusado de cinismo por essa aparente contradição. Como assim defender algo que é ruim para a classe trabalhadora, só por entender que esse seria um estágio para algo melhor que viria depois?

Em um trecho do livro, a escritora resume bem o raciocínio de Marx:

“(...) uma das revelações de Marx foi que por mais que as restrições fossem difíceis, as tentativas prematuras de revolução estariam fadadas ao fracasso. Até que as condições fossem tais que uma vasta maioria das pessoas reconhecesse a necessidade de uma rebelião (ele contava com o livre comércio para criar justamente essas condições), tentar forçar passagem através da ação violenta só levaria um pequeno bando de elitistas ao poder”.

Fábrica de mitos

Outro ponto que chama atenção na obra de Mary Gabriel é a seleção de assuntos considerados “menores”, geralmente comentados em cartas ou artigos escritos por Marx, e que mostram a capacidade do pensador de se antecipar ao seu tempo. É impressionante a atualidade do trecho a seguir, onde Marx analisa o poder da imprensa.

“Até hoje se pensava que o surgimento dos mitos cristãos no Império Romano só foi possível porque a imprensa ainda não havia sido inventada. Mas é justamente o contrário. A imprensa diária e o telégrafo, que num instante espalha invencionices por toda a terra, fabricam mais mitos num único dia (e as manadas burguesas acreditam e os propagam ainda mais) do que no passado teria sido possível produzir ao longo de um século”.

Ao mesmo tempo crítico dessa “fábrica de mitos”, Marx era um defensor ardoroso da imprensa livre. “É profissionalmente o cão de guarda do público”, ele declarou, “o incansável denunciador daqueles que estão no poder, o olho onipresente, o porta-voz onipresente do espírito do povo que ciosamente guarda sua liberdade.”

O livro de Mary Gabriel, ao mostrar o nascimento dessas e de outras ideias ao longo da vida de Marx, nos faz entender as contradições do capitalismo e compreender porque suas teses foram tão atacadas na época e nas décadas seguintes. Vale a pena galgar o trabalho da biógrafa norte-americana, em especial nesses tempos de recrudescimento do neoliberalismo e máxima concentração de renda no topo da pirâmide social. Marx e Engels talvez diriam que, nessa quadra do século 21, estamos chegando, enfim, à etapa final da transformação social que eles tanto defendiam. Será?

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