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Os 110 anos de Isaías Caminha

Roberto Seabra - 05/10/18


Há exatos 110 anos o escritor Lima Barreto lançava na revista Floreal os primeiros capítulos do seu primeiro romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha. A obra seria publicada em livro, e completa, apenas no ano seguinte, e mesmo assim por uma editora portuguesa, pois nenhum editor brasileiro quis se aventurar a colocar na praça um livro tão forte, que batia sem dó nem piedade na imprensa, nos políticos e na elite carioca de um modo geral.

Lima Barreto, como se sabe, era negro e pobre. Na verdade nasceu em uma família classe média baixa, que empobreceu em razão da doença do pai, afetado por transtornos mentais em uma época em que a loucura era tratada como mal sem cura. O próprio Lima desenvolveria um quadro de doença mental e sofreria do mesmo triste fim.

Recordações..., por coincidência, veio a lume em 1908, mesmo ano em que morreram Machado de Assis e Aluísio Azevedo. O crítico Gilberto Mendonça Teles afirmou que Lima Barreto “vai operar uma fusão estilística entre a linguagem ‘sublimada’ de Machado de Assis e o ‘baixo’ coloquialismo de Aluísio Azevedo, entre o apuro castiço do primeiro e a linguagem popular do segundo”.

Mesmo com uma prosa pré-modernista tão marcante, o livro foi ignorado pela crítica e pela imprensa, até porque fazia pesadas críticas ao jornalismo de então. Em um processo antecipatório do que viria a acontecer com o próprio Lima, o personagem Isaías Caminha diz no livro que “em regra, nos jornais só se dá notícia dos livros de autores que são conhecidos de quem escreve”.

O silêncio dos jornais sobre o seu livro o magoou muito, a ponto de Lima Barreto pensar em desistir da literatura. Foi salvo pelo grande crítico José Veríssimo que, mesmo tecendo críticas a certo desleixo do autor com a obra, apontou que Recordações... era a principal novidade e esperança da nossa ficção em prosa.

No livro, o personagem Isaías Caminha é um jovem pobre do interior do Espírito Santo que decide tentar a vida no Rio de Janeiro de posse de uma carta de apresentação de um padrinho, dirigida a um deputado. Consegue a audiência com o parlamentar, mas não na Câmara, e sim na casa que este divide com a amante. Surgem aí as primeiras críticas à classe política. Voltando para a pensão de bonde, depois de ter sido elegantemente dispensado pelo deputado e saber, por uma nota de jornal que o mesmo havia mentido para ele, Isaías explode:

“Num relâmpago, passaram-me pelos olhos todas as misérias que me esperavam, a minha irremediável derrota, a minha queda aos poucos – até onde? Até onde? E ficava assombrado que aquela gente não notasse o meu desespero, não sentisse a minha angústia...Imbecis! Pensei eu. Idiotas que vão pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas misérias como galerianos à calceta! Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e prestigia! Porque não lhes examinam as ações, o que fazem e para que servem? Se o fizessem... Ah! Se o fizessem! Que surpresa! Riem-se, enquanto do suor, da resignação de vocês, das privações de todos tiram ócios de nababo e uma vida de sultão...”

Sem o emprego prometido que o permitisse estudar, Isaías vê-se próximo da miséria absoluta, mas é salvo por um russo que conheceu na pensão, o jornalista Gregoróvitch, que consegue trabalho para Caminha na redação do jornal O Globo. O jornal que aparece no livro é uma referência clara ao Correio da Manhã, um dos diários mais prestigiados do começo do século 20. Naquela época ainda não havia nascido o jornal da família Marinho, a semente das organizações Globo.

E é em O Globo que Isaías Caminha aprende o caminho das pedras para subir na escala social, mas não sem antes conhecer a podridão da vida nas redações. Como no trecho a seguir, onde mostra como o jornal migrou da crítica ao conchavo com os poderosos, dentro e fora da política:

“(...) o aparecimento d’O Globo levantou a crítica, ergueu-a ao graúdos, ao presidente, aos ministros, aos capitalistas, aos juízes, e nunca houve tão cínicos e tão ladrões. Foi um sucesso; os amigos do Governo ficaram em começo estuporados, tontos, sem saber como agir. Respondiam frouxamente e houve quem quisesse armar o braço do sicário. A opinião salvou-o, e a cidade, agitada pela palavra do jornal, fez arruaças, pequenos motins e obrigou o Governo a demitir esta e aquela autoridade. E O Globo vendeu-se, vendeu-se, vendeu-se...”

Lima Barreto, por intermédio de seu personagem, não alivia também para os profissionais da imprensa, a quem critica pela forma como tratam o dono do jornal onde trabalham.

“Pelos longos anos em que estive na redação de O Globo, tive ocasião de verificar que o respeito, que a submissão dos subalternos ao diretor do jornal só deve ter equivalente na administração turca. É de santo o que ele faz, é de sábio o que ele diz. Ninguém mais sábio e mais poderoso do que ele na terra. Todos têm por ele um santo terror e medo de cair da sua graça, e isto dá-se desde o contínuo até o redator competente em literatura e cousas internacionais”.

O escritor carioca fez da sua estreia em romance uma versão abrasileirada e ainda mais ácida de As Ilusões perdidas, de Balzac. Se seu livro não tem o mesmo vigor da obra do escritor francês, por outro lado é mais enfático e realista ao retratar a promiscuidade dentro do meio jornalístico, a ponto do livro ser taxado por um crítico carioca de “venosíssimo!”.

Além da crítica política, Lima Barreto também usa seu roman à clef (ele Lima trabalhou em jornal e sofreu as mesmas agruras de Caminha) para fazer a crítica dos costumes. Mostra os vícios da elite carioca, em especial a forma como os jornalistas se tornaram aliados dessa mesma elite, e lamentava não termos mais os grandes jornalistas-tribunos do século 19. E compara a imprensa brasileira com a do estrangeiro, em crítica que soa estranhamente atual:

“A imprensa popular de qualquer país, por exemplo: o Martin, o Journal (falo dos que conheço) – não é tão indigente de leitura, de atrativos outros que não o vulgar noticiário, como os jornais do Rio, nos quais quase não existe colaboração de qualquer natureza".

E completa, com incrível argúcia e atualidade:

“Guiados (os jornais) pelas mesmas leis, obedecendo quase a um único critério, todos eles se parecem; e, lido um, estão lidos todos".

Recordações... não é o melhor romance de Lima Barreto, mas certamente é o que descreve com mais realismo um País que no começo do século 20 começava a tornar-se urbano e que tinha na imprensa comercial nascente uma espécie de arena pública. O mérito do autor foi ter mostrado que essa mesma arena, desde aquela época, era pouco republicana e que seus interesses sempre estiveram desde o nascimento entrelaçados com a velha política.

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