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Alice no asfalto

Roberto Seabra - 25/06/2018


Sem olhar para os lados, os passos largos e decididos para a sua idade, ela vem descendo a calçada em direção à pista. A calçada é seu terreno. Dela, das crianças que andam de bicicleta e dos cachorrinhos que inundam as manhãs de sol.

De um lado e do outro do passeio, duas fileiras de árvores imensas transformam o local em uma aleia fresca e escura. Mas a menina, muito magra e muito branca, caminha quase levitando pela calçada, a caminho do asfalto.

O asfalto é o terreno das feras da cidade. Carros passam a cada segundo, uns vagarosamente, outros zunindo sem razão. Imaginam que a cidade é só deles. Esquecem que a cidade também é das pessoas que andam nas calçadas.

Alice agora está a poucos metros do asfalto, num ponto onde uma grande faixa zebrada indica o local da travessia. Diante dessa faixa as feras são obrigadas a parar. Não há nenhum guarda por perto, nem câmera escondida para fotografar. Os donos das feras param diante da faixa porque sabem que deve ser assim. Se não houver limites, as feras podem não respeitar a mais ninguém, então a cidade ficará um lugar horrível de se viver.

Mas para o nosso desespero, enquanto a menina – magra, branca e, pior, decidida − se prepara para atravessar a rua, um carro se aproxima rapidamente da faixa, a uma velocidade estranha para aquele local e para aquele horário. Vejamos o que guia a fera.

No volante de seu carro um ponto qualquer coisa, de rodas niqueladas e vidros escuros, o rapaz não pensa na cidade cá fora. Ele ouve uma música muito alta, os vidros estão fechados e o rapaz não vê a faixa. Na verdade, as pessoas da cidade é que precisam parar quando ele vem. Elas param, esperam ele e sua fera atravessarem a faixa, num átimo, e depois cruzam a rua. As pessoas gritam, xingam, só para relaxar, pois sabem que não adianta, que o rapaz e sua fera continuarão não vendo as pessoas que atravessam a faixa, as árvores do caminho e muitos menos os cachorrinhos das manhãs de sol.

Mas Alice não é igual às outras pessoas. Ela não está nem aí para as feras e os rapazes que não conhecem nada da vida. Ela quer viver e tem pressa. Vem caminhando rápido para encontrar-se com uma amiga. Juntas, as duas seguirão o caminho da escola. A calçada é o seu caminho e a rua é apenas um pequeno trecho escuro que ela deverá atravessar para cumprir seu objetivo.

Alice olha rapidamente para os dois lados da pista e vê um carro vagaroso, dirigido por uma simpática mulher, talvez mãe de meninas iguais a ela, ou de rapazes iguais ao motorista que lá vem. Alice não vê o outro carro que se aproxima rapidamente. Ela esqueceu a orientação que seu pai havia dado: “só atravesse a rua quando todos os carros estiverem parados. Não confie nesses motoristas”.

Não é que Alice confiasse. Mas para ela o mundo andava em outra dimensão. Os cachorrinhos brincalhões, os mognos gigantescos que sombreavam a calçada, as folhas secas que patinavam na calçada, as crianças pequenas andando de bicicleta, o cheiro de pão vindo da padaria, tudo fazia parte da paisagem que Alice gostava de percorrer todas as manhãs. E nessa paisagem não havia carros zunindo.

Alice começou a atravessar a rua na mesma velocidade em que andava nas calçadas. Sentia-se segura, feliz, a manhã era realmente deliciosa. O sol espantava o frio que ainda estava colado ao uniforme da escola. Olhou rapidamente para a mulher simpática que havia parado na faixa, mas não entendeu a expressão de preocupação da motorista, que olhava pelo retrovisor e via um carro se aproximando rapidamente. Alice ouviu o barulho da buzina do carro da mulher, e olhou para trás sem parar de andar.

Um segundo é quase nada na vida de uma menina. Ela precisa de todo o tempo do mundo para fazer tudo o que tem vontade. Mas cada segundo deve ser vivido com muito cuidado, especialmente nessa cidade onde os carros cruzam o asfalto sem se importar muito com as pessoas. Só que o carro é feito de aço, pesa uma tonelada, é movido a gasolina e não tem sonhos. Alice é feita de amor e carinho, pesa pouco mais que um pássaro, e é movida por sonhos. Dois ‘seres’ completamente estranhos, que não deveriam habitar o mesmo lugar. Mas habitam.

Pois os dois seres se encontram de maneira trágica. A tonelada de aço, vinda a uma velocidade brutal, no volante um rapaz que poderia ser irmão de Alice, atravessou a faixa de pedestre e atingiu a menina. Alice voou alguns metros – ela realmente pesava pouco mais do que um pássaro – e caiu no asfalto. A menina muito branca, o asfalto muito escuro.

Uma pequena sombra que surge do nada se curva diante de Alice e a tira dali. A partir daquele dia não haveria mais escola, nem manhãs radiantes, nem cachorrinhos brincalhões, nem cheiro de pão. A cidade estava mais livre para as feras.

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