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Cartola e o Presidente




Roberto Seabra - 13/02/2018


Brasília, dezembro de 1978, se não me falha a memória. Jornalistas, artistas e intelectuais da cidade se encontravam no Clube da Imprensa para falar mal do governo (naquele tempo ainda estávamos em plena ditadura militar), beber cerveja e jogar futebol. Não nessa ordem, pois primeiro vinha o futebol, depois a cerveja, e só então a coragem para esculhambar os milicos, que ainda prendiam e arrebentavam, apesar da prometida abertura: lenta, segura e gradual.

O Clube também era o local para onde se levavam os artistas e as figuras públicas nacionais que vinham à cidade. Me lembro de uma visita muito especial, feita pelo compositor Cartola, da Mangueira. Meu pai, Manoel, mas que todos conheciam pelo apelido de Cri, cuidava do bar do Clube e quando o movimento apertava me chamava para ajudar a servir as mesas. Quando viu o Cartola no seu bar ficou emocionado e falou comigo: “Filho, tá vendo aquele senhor de chapéu e óculos escuros? É o Cartola, um grande músico brasileiro. Você vai lá na mesa e pergunta o que ele quer beber.”

Me lembro como se fosse hoje. Cartola pediu que eu perguntasse ao meu pai se o bar tinha conhaque Presidente. Voltei do balcão com a garrafa lacrada, um copo e um pires com um limão cortado ao meio.

O genial compositor de “As Rosas não Falam” e “O Mundo é um Moinho” – cito dois clássico só para refrescar a memória dos leitores mais jovens – pegou o copo, cheirou a bebida e deu um grande gole. Estalou a língua, tirou a garrafa de Presidente das minhas mãos e a colocou sobre a mesa. Fiquei parado, sem saber se me retirava ou se esperava mais algum pedido.

Cartola viu que eu continuava ali e me disse uma frase que provocou gargalhadas entre os jornalistas que o cercavam e que até hoje eu guardo de cor:

“Garoto, este aqui é o único Presidente em que você pode confiar”, disse isso segurando a garrafa de conhaque pelo gargalo.

O presidente da época era o general João Batista Figueiredo, que prometia encher a panela do povo e fazer a abertura na marra. Seis anos depois – pois o mandato dele fora estendido por mais um ano, em mais uma afronta ao Congresso Nacional – o povo continuava na pindaíba e a abertura não trouxera as esperadas eleições diretas para presidente.


Só mesmo um grande poeta do samba para conseguir reunir em uma só frase política, filosofia, humor e cultura etílica. Grande Cartola! Que Deus o tenha.







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