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18 de maio: para lembrar Aracelli e Ana Lídia

Roberto Seabra - 16/05/2021




Uma sociedade que viveu um passado de opressão necessita de ideias, histórias e arte para superar aquele momento e conseguir avançar sem correr o risco de cair novamente naquela vala que ficou para trás. O povo judeu que foi vítima na Alemanha nazista é talvez o melhor exemplo. Teses, filmes, livros e histórias contadas de geração em geração lembram todos os dias aos demais judeus e, ao resto do mundo, o que foi o holocausto. Imagine o que apenas um livro, O diário de Anne Frank, que já vendeu centenas de milhares de exemplares e foi lido por milhões de pessoas, já fez pela memória do não-esquecimento do nazismo?


Algo semelhante fez e faz o cinema e a literatura norte-americanos, que quase todos os anos soltam pelo menos um romance, um estudo ou um filme sobre o racismo, passado ou presente, nos Estados Unidos. É por isso que lá o julgamento recente dos assassinos de 1 homem negro morto pela polícia moveu o país e mobilizou o mundo, enquanto aqui as mortes de pessoas negras inocentes se sucedem e não lembramos mais qual foi mesmo a última vítima.


É a cultura, estúpido!

Sim, é a cultura, no sentido da produção de sentidos, que permite a um povo não esquecer. Pois se as pessoas esquecem coisas recentes, o que dirá traumas históricos ocorridos há décadas ou séculos? É preciso narrar as histórias, contar e recontar os casos e apontar os crimes cometidos, ou estaremos fadados a repeti-los, já disse alguém.


O Brasil, por exemplo, é um país de memória curta. Curtíssima! E inculto. Me lembro de um caso que uma amiga me contou, quando foi ver o filme Getúlio, no cinema, e uma mulher ao lado ficou arrasada com o suicídio cometido pelo personagem principal do filme, aliás interpretado com maestria pelo ator Tony Ramos. Em favor da espectadora, poderíamos dizer que uma história bem contada deve mesmo nos levar por um túnel do tempo que nos faz esquecer a realidade, e que o que ela estava vendo ali não era somente a História do país, mas também uma história.


Mas a verdade é que somos um país sem memória. Ainda que muitas pessoas se esforcem para lembrar aos seus contemporâneos, por exemplo, de que vivemos uma cruel ditadura por 21 anos (1964-1985), muitos preferem jogar o jogo do faz de conta, aquele onde se confunde a história pessoal – a minha infância feliz! – com uma história coletiva de opressão, censura e retrocesso democrático.


No Brasil, o 18 de maio é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, efeméride escolhida pelo Congresso Nacional em memória da menina Aracelli, que naquela mesma data, no ano de 1973, quando havia completado apenas oito anos, foi violentamente assassinada, após sofrer abusos sexuais. Os suspeitos – filhos de famílias ricas do Espírito Santo – jamais foram sequer julgados.

Três anos depois, o escritor e jornalista maranhense José Louzeiro lançou o livro Aracelli, meu amor, de cunho jornalístico-investigativo, onde ele demonstra que a criança foi espancada, estuprada, drogada e morta numa orgia de drogas e sexo. “Os detalhes da violência são de difícil digestão até para os estômagos mais resistentes. Como se não bastasse, seus assassinos desfiguraram seu rosto com ácido”, relata a orelha do livro, da Editora Prumo, que relançou a obra em 2013. Aracelli, meu amor ficou anos sem circular pois o livro foi censurado a pedido dos advogados dos acusados pelo crime.


Por não ser uma obra de ficção e sim jornalística, o livro de Louzeiro é rico em detalhes reais. Quando o crime completou 40 anos (1973-2013), o escritor deu uma entrevista ao jornal Brasil de Fato, onde resumiu em uma frase o que aconteceu com Aracelli: “Nós vivemos num país que tem dois donos: os ricos e os milicos”.


Em alguns momentos o livro de Louzeiro é sombrio, como a própria história. Mistura fatos com causos mal-assombrados, mas põe o dedo na ferida e acusa: Dante Michelini Jr., o Dantinho, e Paulo Helal, o Paulinho, assassinaram Araceli, em “uma festinha violenta do pessoal da motoca”. O jornal pergunta: “As famílias Helal e Michelini eram traficantes de drogas?”:


“Sim, elas eram donas do tráfico, da polícia, dos ônibus, dos aviões, do campo, da cidade, tudo", responde Louzeiro.


Os ricos mataram, enquanto os milicos não deixaram que o crime fosse solucionado. Nada mais atual, não é verdade?


Caso Ana Lídia

Naquele mesmo ano de 1973, quatro meses depois da morte de Aracelli, a menina Ana Lídia, de apenas 7 anos, teve o mesmo triste fim da criança capixaba. O crime aconteceu em Brasília e os principais suspeitos eram dois jovens: Buzaidinho, filho do ministro da Justiça Alfredo Buzaid; e Rezendinho, filho do senador Eduardo Rezende, líder do governo na casa. A censura proibiu a imprensa de falar sobre o caso, que acabou sendo arquivado por falta de provas.


Em 2017 lancei um livro onde trato do caso Ana Lídia, mas pelo viés da ficção. Como os arquivos da investigação nunca vieram a público e, ao contrário de Louzeiro, eu não participei como repórter da apuração do caso (e nem poderia, pois na época da morte de Ana Lídia eu tinha 9 anos), meu trabalho é puramente especulativo. Recriei a história, inventei personagens novos, mas não deixei de embasar toda a narração em fatos. Lidos ou ouvidos. Silêncio na cidade, é esse o nome do livro que escrevi, nunca teve a mesma repercussão que a obra de Louzeiro, mesmo porque não tenho a mesma verve que o escritor maranhense.


É que sempre me surpreendeu que um caso tão importante para a história de Brasília e do Brasil nunca tenha merecido a atenção de escritores, historiadores ou jornalistas. Fiz porque ninguém fez. Mas, de fato, se formos comparar os dois casos, a morte de Ana Lídia - que sofreu suplício parecido ao de Aracelli - seria de maior impacto que aquela ocorrida no Espírito Santo, pois houve o envolvimento direto da ditadura militar no acobertamento do crime. Imaginem se o país ficasse sabendo pela imprensa que o ministro da Justiça e o líder do governo do general Médici estariam atuando para livrar os filhos de crime tão escabroso? A ditadura poderia ruir antes do tempo.

Ainda que as mortes de Aracelli e Ana Lídia permaneçam encobertas, e que as famílias dos assassinos continuem ricas, e ainda protegidas pelos milicos, não custa repetir o que foi escrito no início deste artigo: ler livros, ou ver filmes, que denunciam a opressão, é fundamental para que o passado não se repita. Nunca mais!

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