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Um rinoceronte na escuridão

Roberto Seabra - 23/08/21




Acredito cada vez mais na existência de uma “inteligência nas pontas dos dedos”. Só ela explica o fato de eu não ter a mínima ideia sobre ‘o que’ vou escrever, e que de repente as ideias se multipliquem, por intermédio de palavras, e brotem assim que eu abro o meu laptop e me proponho a escrever alguma coisa.


E é também com as pontas dos dedos que eu pego e folheio o livro que acabei de ler, buscando dentro dele e nos trechos marcados a lápis alguma inspiração. É um romance, do tipo autobiográfico, que conta a história da família do autor no Brasil, vinda do Líbano. Mas dizer isso é muito pouco. Cheguei a esse livro lendo outro, não um romance, mas de ensaios sobre literatura.

Reflexão e narração se juntam para me levar para as minhas próprias memórias e as dos meus familiares, tema aliás da parte introdutória do livro de ensaios, intitulada “Lembrar” e, claro, do romance, que conta a saga familiar do autor.

O livro que acabo de ler chama-se Nur na escuridão (Editora Record, 1999), do escritor libanês-brasileiro Salim Miguel. O outro, que me levou até ele, chama-se O prego e o rinoceronte: resistências na literatura brasileira (Editora Zouk, 2021), da professora e pesquisadora Regina Dalcastagnè.


A liga entre os dois se faz pela história da minha família, pois meu bisavô Hussein Marmuth Sabra El-Awar, depois chamado José Seabra, veio do Líbano por volta de 1915, com pouca idade, para aqui conseguir trabalho, casar-se e construir família com a portuguesa Júlia Farias.

Conheci meu bisavô em sua padaria no bairro de Casa Forte, no Recife, quando eu era uma criança. Ali vi, ouvi, provei e senti os cheiros das histórias e dos pães produzidos por aquele homem alto e risonho, que nunca ensinou o árabe aos filhos, pois aprendeu rápido o português e fez do Brasil sua pátria, alterando até o nome para parecer mais brasileiro do que de fato era.


Se bem que dentro da família existe a história de que a troca do nome não foi intencional, mas fruto de erro do tabelião, que ouviu Sabra e entendeu Seabra, sobrenome de comerciantes famosos em Belém do Pará, cidade onde meu bisavô chegou vindo do Marrocos.

O livro de Salim Miguel, um escritor profícuo e premiado, é analisado por Regina Dalcastagnè para discutir o que ela chama de “impulso de criação” de um homem comum, na verdade “um pequeno caderno de anotações onde estão inscritas as memórias de José Miguel (1897-1981), imigrante libanês que aporta no Brasil com mulher e filhos em 1927”.

E como contraponto a esses “guardados familiares”, ela analisa Nur na escuridão, escrito pelo filho mais velho de José Miguel, Salim Miguel (1924-2016), e que usa em seu romance trechos do caderno do pai, escrito originalmente em árabe e que só foi traduzido anos depois de sua morte.

O que me interessa aqui, para além de outras questões fundamentais levantadas por Regina Dalcastagnè em seu livro, é a capacidade da literatura em nos tirar do nosso conforto e nos levar a buscar nas nossas origens familiares o que nós somos.


Quem foi aquele meu bisavô? Por que deixou o Líbano e migrou para o Brasil ainda jovem? O que o levou a mudar de nome? Por que, ao aportar em Belém, dali partiu para o Recife e ali construiu sua vida no comércio? Onde conheceu a minha bisavó Júlia? Alguma vez pensou em voltar para o Líbano? Quando morreu, no início dos anos 1970, o que pensava sobre ter um filho (meu avô) jornalista e comunista, ele que o matriculou nos anos 1940 em um seminário católico, pois queria garantir ao filho uma educação exemplar e cristã?

Não tenho respostas completas para tais perguntas, pois meu bisavô não legou um caderno de recordações e minha família responde com fiapos de memórias às minhas indagações. Preciso me fiar, portanto, nas minhas precárias lembranças da infância.

Me lembro que brincava em um quintal, que era também depósito de sacos de farinha da padaria, ao lado dos meus tios-irmãos, que têm a mesma faixa etária que a minha, pois a minha mãe é a mais velha de um prole de dez do casal Geraldo e Madalena.


Minha bisavó era uma grande cozinheira e a isso se junta na minha memória o cheiro do pão doce que saía do forno da padaria no final da tarde, para aproveitar a fome e a hipoglicemia dos que voltavam para casa. Eu adorava ganhar um pão daqueles, quentinho, comido ali no quintal mesmo, para logo retomar as brincadeiras na rua.


Volto aos livros lidos e que tanto me impactaram. O rinoceronte do título do livro de ensaios de Regina Dalcastagnè é o de Albrecht Dürer, em gravura feita em 1515 pelo artista europeu sem nunca ter visto antes aquele animal. Dürer fez um “retrato falado” de um rinoceronte, como bem sintetizou a autora, a partir das descrições de outras pessoas.


A obra de arte de Dürer, cita a autora, nos faz lembrar que “nossas relações com o mundo são mediadas pelas representações sobre ele, às vezes mais do que pela própria realidade”. Ou seja, durante séculos, o rinoceronte de Dürer, com escamas e uma carapaça que o aproximava mais a um dragão do que a um rinoceronte africano, foi a ideia de rinoceronte para milhões de europeus. E a autora arremata:


“Por mais que nos esforcemos para olhar em volta, para entender o que vem sendo produzido no momento, o que costumamos entender como literatura está entrelaçado a um conjunto de ideias e imagens profundamente enraizadas (muitas vezes, em solo europeu)”.


O prego que aparece no título, por sua vez, é uma referência a uma história contada a ela por um aluno do

curso de Antropologia. A partir de uma experiência acadêmica de colocar máquinas fotográficas artesanais, feitas de lata, nas mãos de meninos e meninas de rua, algumas fotos chamaram atenção do grupo de estudo. As crianças e adolescentes deveriam registrar com aquelas máquinas o que as oprimia, e muitas fotografaram policiais, garçons e vendedores, figuras que as enxotavam no dia a dia. Mas um conjunto de imagens destoava: eram fotografias de uma parede vazia, com um prego espetado no meio. A autora explica:


“Uma vez que as fotos não faziam sentido para a equipe de pesquisadores, chamaram o menino para conversar sobre o assunto. Ao contrário do que pensavam, ele havia entendido o que queriam e explicou o seu recorte: era engraxate, mas não tinha autorização para trabalhar em qualquer lugar, por isso alugava aquele espaço e o prego era onde podia pendurar sua caixa. Era aquilo que o oprimia, a exploração do trabalho”.


O rinoceronte de Dürer é a representação imposta, muita vezes em conflito com a realidade. O prego na parede fotografado pelo menino de rua é a resistência, pela arte, de quem luta contra a opressão.


A palavra árabe nur em português quer dizer luz, e foi a primeira que o pai de Salim Miguel aprendeu no Brasil. Não sei qual foi a primeira palavra em português aprendida pelo meu bisavô. Mas a imagem de um rinoceronte africano (meu bisavô veio do Marrocos, depois de fugir do Líbano em guerra) vagando pela escuridão me parece muito bela. Longe da civilização que está levando sua espécie ao extermínio, esse rinoceronte imponente e solitário da minha imaginação representa, para mim, uma resistência tão forte quanto a do menino de rua que conseguiu fotografar a própria opressão.

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