Pede-se não enviar flores
Marcelo Torres - 19/04/2021
Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá. Este é um dos menores contos da literatura, cheio de entrelinhas, escrito por Augusto Monterroso, hondurenho de nascença, que cresceu guatemalteco e morreu mexicano. Mas quero falar é de uma frase de Clarice Lispector, ela que nasceu ucraniana e fez-se brasileira, pernambucana e carioca para todo o sempre.
De uma de suas crônicas puxei esta frase inquietante: Quando morri, um dia abri os olhos e era —. O travessão, ressalvemos, não existe lá no texto — foi este atrevido leitor que ousou colocá-lo, com o tento de criar certo mistério — essa palavra que passou a ser um crachá, um carimbo, nome ou sobrenome, enfim passou a ser uma espécie de sinônimo da autora.
Esse travessão pode ser, por exemplo, Drummond. No dia da morte de Clarice, o autor de Claro Enigma assim iniciou um poema: Clarice, veio de um mistério, partiu para outro. O travessão pode ser outro amigo dela: Quando morri, um dia abri os olhos e era Ferreira Gullar — ele que na hora do enterro estava num táxi para o aeroporto, onde pegaria voo para outro país: Enquanto te enterravam no cemitério judeu [...] o táxi corria comigo [...] as pedras e as nuvens e as árvores no vento mostravam alegremente que não dependem de nós.
O travessão pode ser uma personagem. Quando morri, um dia abri os olhos e era Macabéa — aquela moça nordestina que uma tia levara para o Rio, onde a pobre subiu e desceu e bestou e acabou morrendo atropelada. Quando morri, um dia abri os olhos e era Joana — vento que não soprava, bicho estranho, que olhava pela janela as galinhas que iam morrer, que sonhava em ser bela e forte como um cavalo novo.
Quando morri, um dia abri os olhos e era Ulisses — não o de Homero, claro, nem o de James Joyce, nem o doutor-deputado quase presidente, mas um cão pé-duro, vira-lata, que fumava com ela, e sofria depressão, tomava remédio, mordia canetas, rasgava papéis, bebia cerveja e perdia a cabeça quando tomava uísque — a ponto de um dia, com duas doses, morder e sangrar os lábios da dona.
O travessão, penso eu, pode bem ser ela mesma: Quando morri, um dia abri os olhos e era Clarice. Ora, se ela era uma pergunta, se era uma vírgula, um parêntesis, se era ela um enigma, uma esfinge, se era Clarice as entrelinhas, então podia muito bem ser esse sinal gráfico de pontuação que é um verdadeiro risco.
Quando morri, um dia abri os olhos e era um dinossauro. Sim, aquele bicho que mesmo extinto ainda estava lá. O travessão era talvez um esqueleto de uma baleia, ali naquela praia, ali na areia. Quando morri, um dia abri os olhos e era osso — osso seco de puro espanto no sol inclemente da praia. Quando morri, um dia abri os olhos e era um fantasma. O fantasma de um velho cego com cajado fazendo toc-toc-toc — e sem cachorro, coitado.
Quando morri, um dia abri os olhos e era — era uma sexta-feira, 9 de dezembro de 1977, dia-véspera do aniversário de cinquenta e sete anos e o corpo só pôde ser enterrado dois dias depois, no domingo, pois o sábado para os judeus é sagrado ao descanso. E foi no sábado que uma nota de falecimento foi publicada no Jornal do Brasil:
CLARICE LISPECTOR
A família e os amigos de CLARICE participam o seu falecimento e convidam para o sepultamento, domingo, dia 11, às 11 horas no Cemitério Comunal Israelita do Caju.
Pede-se não enviar flores.
Pede-se não enviar flores. Logo Clarice, que, quando criança lá no Recife, arrancou mil rosas roubadas dos jardins vizinhos. Logo ela, que sempre dizia dores e delícias das flores. Falava, por exemplo, que a margarida vinha à tona da pele. Que o girassol era o grande filho do sol. Que o cravo vermelho tinha um berro violento de beleza. Que a estrelícia se mostrava em agressividade de amor.
Vinicius, num poema, perguntava: Quem pagará o enterro e as flores se eu morrer de amores? Mas Clarice, maçã no escuro, coração selvagem, não morreu de amores nem por amores. Uma irmã foi quem pagou o enterro. E ninguém precisou mandar flores, respeitando o aviso e a tradição. No rito de adeus de um judeu, o corpo deve voltar como veio — sem anel, sem brinco, sem batom, sem flor.
Cerca de duzentas pessoas se despediram de Clarice no Cemitério Comunal Israelita do Caju, entre elas as irmãs Tânia e Elisa, o filho Paulo e os amigos escritores Rubem Braga, Fernando Sabino, Nélida Piñon e Rubem Fonseca. Um detalhe que não passou despercebido foi a ausência do filho Pedro e do ex-marido, o embaixador Mauri Gurgel Valente, que moravam em Montevidéu.
Quando morri, um dia abri os olhos e era —. Era uma cidade, mas não a pequena Chechelnik, na Ucrânia, onde foi dada à luz, mas nunca botou os pés naquele chão, de onde a família fugia de malas e trens, porque em dias de perseguição aos judeus. A bebê era levada na viagem ora no colo da mãe, ora no do pai, ora no das irmãs.
O lugar não era Maceió, Belém, Recife ou Rio de Janeiro. Nada de Itália, Suíça ou Estados Unidos, nenhum dos mundos onde morou. E também não era o Cairo, Nova Iorque, Atenas, Roma, Rabat, Lisboa, Londres, Paris ou Berlim. O que ela escreveu foi o seguinte: Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado, sem chofer...
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