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Duas estações

Beto Seabra - 09/11/23



Minha bisavó Juliana está bem velhinha e conta umas coisas engraçadas sobre antigamente. Ela nasceu no ano 2000, vejam só que legal. Então vai fazer noventa no ano que vem. Ela me disse que no tempo da juventude dela não existia só o verão e a tórrida. Havia também o inverno (sim, sei que todos conhecem a palavra, mas sabem o que é?), a primavera, que hoje é apenas um substantivo poético, e o outono, essa palavra aposto que vocês nunca ouviram falar. Eram quatro estações bem definidas: uma mais quente, outra menos quente, uma seca e fria e outra apenas fria.


Lembrei-me disso porque o verão está acabando e daqui a duas semanas teremos que voltar para as estações térmicas, para nos abrigar da tórrida, quando a temperatura chega a 60 graus centígrados aqui fora. Mas esse verão de quase 50 graus já está insuportável, então já tem gente dizendo que ano que vem não sairemos mais dos abrigos. Nossas potentes placas solares produzem energia para suportar as gigantescas máquinas de ar-condicionado 24 horas por dia. Mas e a água cada dia mais cara e escassa? E a comida, que já virou ração?


Minha bisa diz que sabia que o mundo iria acabar em fogo. Ela fazia parte de uma comunidade rural que comprou uma fazenda de soja e começaram a plantar árvores do Cerrado. A esperança era reverter o fim das florestas do Planalto Central. Não conseguiram. Hoje, tirando dois ou três parques ressequidos, não existe mais Cerrado. Nessa estepe tórrida, como a nova estação, só sobrevivem calangos e insetos. Nem os pássaros estão mais por aqui, migraram para o resto de floresta amazônica que começa a secar também.


Ela me diz que lá pelos anos 2050, quando meu pai tinha mais ou menos a idade que eu tenho hoje, pensaram também em mudar-se para o litoral, que é menos quente, mas depois da grande onda que a tudo destruiu, desistiram da mudança.

Meu pai um dia me disse que me ama muito, mas que se arrependeu de ter permitido que eu viesse ao mundo. Não queria te deixar como herança, minha única filha, uma vida maldita, disse ele. Mas sua mãe queria ser mãe. Tinha esperança no mundo, era uma sonhadora. Não suportou o que veio depois e nos deixou antes da hora. Quem sabe você será a esperança que ela sonhou?


Meu pai é engraçado como a avó dele. Conta coisas antigas, não para me deixar com saudade de algo que não vivi, mas para eu saber que o mundo poderia, ou pode, ser melhor. Ele acha que eu tenho uma missão: a de reverter o aquecimento da Terra e salvar a vida. Tadinho dele. Eu mesma já me acostumei a viver dentro da estação, acho até chato o período de verão, com aquelas multidões nas ruas, respirando o ar quente e seco e poluído como se fosse ar puro. Ar puro eu tenho aqui, na minha casa, com temperatura ambiente de 22 graus. Mas ele e minha bisa são saudosistas, eu acho.


Ele tem razão quando diz que esse mundo das estações climatizadas é insustentável. Mas o que posso fazer? Quando nasci o mundo já se encaminhava perigosamente para o buraco quente onde estamos. Sei que ele, meu avô e minha bisa, as três gerações, fizeram a parte deles, mas foi como jogar um copo d’água num incêndio de floresta.


Eu sou pesquisadora, especializada em recuperação florestal. Passo os dias produzindo mudas em estufas climatizadas, que um dia serão transplantadas para o exterior. O problema é que a temperatura lá fora não para de subir. Tentamos criar florestas artificiais, com árvores preparadas para suportar temperaturas maiores. Mesmo assim, são poucas as que sobrevivem. Então o processo natural de destruição das florestas – pelo simples aumento da temperatura, sem precisar mais da ação do homem – é maior que a nossa capacidade de reflorestar. Hoje, derrubar uma árvore é crime gravíssimo. Aliás, nem precisava ser, pois elas não existem mais ao nosso alcance.


A bisavó Juliana disse que não quer saber de festa em seus noventa. Pede apenas ao criador que a leve o mais rápido possível, antes que o dia final surja no horizonte. Mas eu estou preparando uma festa surpresa. Como ela faz aniversário no meio do verão, estou produzindo uma mini floresta de Cerrado, em uma das estufas em que trabalho. São mais ou menos umas duzentas árvores. Tem pequizeiro, ipês das quatro cores, pé de cagaita e de cajuzinho do Cerrado, entre outras espécies. Daqui a um ano elas estarão prontas para serem replantadas lá fora. Não devem suportar a tórrida, infelizmente, mas pelo menos no dia dos noventa da minha bisa elas estarão verdes e cheirosas. E que elas sejam eternas enquanto durem, como escreveu um antigo poeta do século 20.

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