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Livro-manifesto coloca movimento feminista em novo patamar


Roberto Seabra - 18/03/2019

Quando em outubro de 2016 mais de 100 mil polonesas marcharam pelas ruas de várias cidades em oposição à proibição do aborto num dos países mais católicos da Europa, uma nova onda feminista começava a reinventar o conceito de greve. Dias depois, desta vez na Argentina, mulheres grevistas responderam com uma grande paralisação ao assassinato brutal de Lucía Perez, com o movimento denominado “Ni una menos”.

A onda já havia atravessado o oceano Atlântico, como lembram as autoras do livro “Feminismo para os 99%: um manifesto”, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, e meses depois chegaria aos Estados Unidos, onde as três são professoras universitárias. No 8 de Março de 2017 ativistas de várias partes do mundo fizeram a Greve Internacional das Mulheres, movimento que contou com Arruzza, Bhattacharya e Fraser na organização e foi uma espécie de marco desse novo feminismo que se espalhava pelo mundo.

No 8 de março deste ano o livro foi lançado ao mesmo tempo em nove países e, na versão brasileira, recebeu um prefácio de Talíria Petrone, eleita deputada federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, e apresentação de Joênia Wapichana, única parlamentar indígena, eleita pela Rede Sustentabilidade em Roraima.

Mas o que é o feminismo para os 99%? Para as autoras, não são as “quinquilharias cafonas da despolitização – as flores, os cartões e as mensagens de felicitação”, que inundam os locais de trabalho e as redes sociais todos os anos no dia 8 de março. Feminismo para os 99% não é isso.

Feminismo para o 1%

Também não é o que defendeu no ano passado a diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg, quando disse que “estaríamos em uma situação muito melhor se metade dos países e das empresas fosse administrada por mulheres e metade de todos os lares fosse administrada por homens”. Para as autoras, isso é apenas um feminismo para o 1%, ou seja, para a minoria que já detém o poder (político e econômico).

Para elas, feminismo para os 99% foi o que aconteceu na Espanha, na primavera de 2018, quando 5 milhões de mulheres pararam o país. Na greve feminista de 24 horas elas exigiam “uma sociedade livre da opressão sexista, da exploração e da violência [...] por rebelião e luta contra a aliança entre o patriarcado e o capitalismo que nos quer obedientes, submissas e caladas”.

Ao lado dessas palavras de ordem, as autoras apresentam argumentos e números que mostram a distância tremenda entre a exortação da CEO do Facebook e as mulheres trabalhadoras que foram para as ruas inventar um novo tipo de greve, que junta no mesmo programa reinvindicações identitárias, políticas e econômicas.

Para elas, “Sandberg e sua laia veem o feminismo como serviçal do capitalismo. Querem um mundo onde a tarefa de administrar a exploração no local de trabalho seja compartilhada igualmente por homens e mulheres da classe dominante”. As autoras chamam a isso de “dominação com oportunidades iguais”, ou seja, “aquela que pede que pessoas comuns, em nome do feminismo, sejam gratas por ser uma mulher, não um homem, a desmantelar seu sindicato, a ordenar que um drone mate seu pai ou sua mãe ou a trancar seus filhos em uma jaula na fronteira”.

Arruzza, Bhattacharya e Fraser – esta última autora da expressão “feminismo para os 99%” – fazem em seu manifesto uma crítica certeira ao feminismo liberal de Sandberg e mostram que só a greve feminista pode “pôr fim ao capitalismo: o sistema que cria o chefe, produz as fronteiras nacionais e fabrica os drones que as vigiam”.

E é contra esse capitalismo do 1% da população (é possível ser diferente quando falamos em um sistema dominado não pelos princípios de liberdade e igualdade, mas pelo dinheiro?), que as autoras se insurgem. Para as três, o neoliberalismo, essa forma extremamente predatória e financeirizada do capitalismo que dominou o mundo nos últimos quarenta anos, não permite outra saída: não existe caminho intermediário entre os que nos conduzem a um planeta arrasado pela desigualdade social e a destruição ambiental e o outro, que aponta “para um tipo de mundo que sempre figurou nos sonhos mais elevados: um mundo justo cuja riqueza e os recursos naturais sejam compartilhados por todos e onde a igualdade e a liberdade sejam premissas, não aspirações.” O feminismo para os 99% mostra como trilhar esse caminho.

Reprodução social

No manifesto, elas afirmam que o movimento feminista está reinventando a greve, mostrando o enorme potencial político do poder das mulheres, o poder daquelas cujo trabalho remunerado e não remunerado sustenta o mundo. E ao tratar das atividades das quais o capital se beneficia, mas pelas quais não paga, as autoras entram no tema da “reprodução social”, conceito fundamental para entender o livro.

Na opinião das autoras, o capitalismo não apenas vive da exploração do trabalho assalariado, mas também à custa da natureza, dos bens públicos e do trabalho não remunerado que reproduz os seres humanos e as comunidades. Sempre em busca do lucro ilimitado, o capital degradou o meio ambiente, criou um mundo onde apenas 1% das pessoas possui a mesma riqueza que os outros 99% e sobrevive graças ao trabalho da reprodução social, feito principalmente pelas mulheres, que é aquele trabalho do cuidado: ter e cuidar dos filhos, cuidar das famílias e dos idosos. Esse trabalho custa caro e é fundamental para a existência da nossa sociedade, mas o capital não paga por ele.

Daí porque a greve das mulheres e o novo feminismo são formas novas de combate ao estado atual das coisas. Como dizem as autoras no livro: “pretendemos identificar e confrontar diretamente a verdadeira origem da crise e da miséria, que é o capitalismo”. Para elas, o 1% mais rico sempre foi indiferente aos interesses da sociedade e da maioria e somente um movimento transnacional que tenha como meta os interesses dos 99% da população é que poderia tirar o mundo da atual crise.

Elas acreditam que, em sua busca obstinada por lucros de curto prazo, esse 1% da população falha não apenas ao avaliar a profundidade da crise, mas também a ameaça que ela representa, no longo prazo, à saúde do sistema capitalista em si. Dados da Oxfam mostram que apenas 1% do planeta detém mais da metade da riqueza, às custas da exploração da maioria. E pior: que apenas 62 indivíduos possuem a mesma riqueza que os 3,6 bilhões de indivíduos mais pobres do mundo! Qual a saída, a não ser parar esse motor capitalista que nos arrasta para o abismo?

Marx e Engels

E hoje, o único movimento que parece ter condições de liderar isso é o novo feminismo. Ao enfrentarem o neoliberalismo, o racismo, o machismo e a homofobia, o Feminismo para os 99%, avaliam as autoras, atualiza as premissas de outro Manifesto, o Comunista, escrito por Marx e Engels no século XIX.

Mas o momento, lembram, é outro. 2018, quando livro foi escrito, não é 1848, quando o Manifesto Comunista foi lançado. “A memória histórica que herdamos inclui a degeneração da revolução bolchevique no Estado stalinista absolutista, a capitulação da social-democracia europeia ao nacionalismo e à guerra e a enorme quantidade de regimes autoritários estabelecidos após as lutas anticoloniais por todo o Sul global”.

Ainda assim, defendem as autoras, além de se afastar de modelos autoritários é preciso fugir de duas armadilhas: a variante “progressista” do neoliberalismo, que propaga uma versão elitista e corporativa de feminismo; e uma variante reacionária, que segue a mesma agenda plutocrática por outros meios, acionando tropas misóginas e racistas a fim de lustrar suas credenciais “populistas”.

A atual crise do capitalismo, acreditam Arruzza, Bhattacharya e Fraser, só poderá ser enfrentada pelo feminismo para os 99%, pois ela é não apenas econômica, mas também ecológica, política e de reprodução social. E finalizam com um alerta: “Relembremos, por exemplo, que aquelas duas revoluções da era moderna, a francesa e a russa, começaram com motins, liderados por mulheres, por causa do pão”.

Título: Feminismo para 99%: Um manifesto

Autoras: Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser

Editora: Boitempo (www.boitempoeditorial.com.br)

Onde encontrar: no site da editora ou das livrarias, além das lojas.

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