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O revólver e o verbo

Roberto Seabra - 16/01/2019


A arma não foi disparada e o assalto ocorreu conforme o que foi previsto (pelos criminosos). Não levaram muita coisa. Não havia cofre, nem armas, nem dólares e nenhuma joia de valor. Mas havia celulares e um bom aparelho de televisão. Sim, e o meu computador pessoal. Nos trancaram num dos quartos da casa e roubaram o que puderam roubar em poucos minutos.

Éramos oito. Seis adultos e dois adolescentes. Sete homens e uma mulher. Ninguém saiu ferido, a não ser o pobre do serralheiro, que além de perder o celular ainda levou um safanão. Nada sério. Nem mesmo sangrou. O portão estava aberto e a ocasião propícia aos assaltantes. Descuido nosso. Não é possível mais viver despreocupado, como antigamente, os portões abertos e as cadeiras nas calçadas. Sentindo a fresca, como dizia minha bisa.

Mas o revólver volumoso na mão do rapaz magro e assustado, apesar do olhar feroz, não me sai da memória. Eu pedia para ele abaixar a arma, que poderia levar tudo, mas o tudo que oferecíamos não era o que ele queria. Cadê o cofre? E eu num arroubo poético e um tanto temerário mostrei a ele a estante da casa, repleta de livros. Este é o cofre.

Numa casa dessas deve ter cofre, insistiu. Mostrei que eu investia tudo em livros (o que não é mentira). A bela coleção em capa de couro deve tê-lo convencido que eu dizia a verdade. Temi que ele quisesse levar alguns, mas livros pesam e não servem para nada, a não ser para serem lidos e relidos.

Nesse momento ele abaixou a arma. Parece ter acreditado mesmo em mim. Perguntou pelas joias. Mostrei a gaveta, com apenas um relógio sem bateria, que ele guardou avidamente na mochila. A outra, da mulher, tinha muitas bijuterias e dois ou três anéis folheados a ouro, que ele me fez enfiar de qualquer jeito na sacola. Foi o que levou. Tudo o que tínhamos para ser roubado.

Nos dias seguintes, restou o susto. Uma arma apontada contra você é uma imagem que não sai da cabeça. A conversa desaparece e prevalecem gritos e o medo de um disparo, mesmo que acidental. O revólver tem esse poder de interditar o diálogo, construído pelos seres humanos por milênios. A faca, também mortal, tem outros usos nobres, mas o revólver tem apenas uma função: matar.

Os grandes homens e mulheres que aprendi a admirar tiveram na palavra a ação. O diálogo e os argumentos usados como arma. Então eu nunca soube como me comportar diante de um revólver. Uma conversa ríspida, composta de ordens e súplicas, não é diálogo. É outra coisa, é o anti-verbo. E quando o verbo desaparece, desaparece também a vida que ele criou.

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