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O troco

Roberto Seabra - 16/12/2018


A faixa de pano estendida na frente do mercado chamou a sua atenção: “Chuchu a um centavo o quilo. Só hoje!”. Não gostava nem desgostava de chuchu, igual a todo o mundo. Mas a um centavo... Olhou para a moeda cor de cobre que estava há semanas na carteira, sem qualquer utilidade, e não teve dúvidas: entrou na fila, encheu um saco plástico com três chuchus e preparou-se para pagar.

− Senhor, é só isso? Perguntou a moça do caixa.

− Sim.

− Bom, 700 gramas de chuchu é só um centavo.

− Um centavo não é o preço do quilo, minha filha?

− É, respondeu encabulada a moça.

− Então quero meu troco, devolveu o homem, estendendo a mão espalmada com a moedinha.

Uma senhora baixinha que aguardava na fila chegou mais perto da máquina registradora e ficou na ponta dos pés para ouvir melhor a conversa. A moça do caixa bem que tentou contornar a situação.

− O senhor pode levar o chuchu sem pagar, disse.

− De jeito nenhum, respondeu o homem. Quero meu troco!

A moça tentou explicar que não havia troco para um centavo, mas a resposta só fez irritar ainda mais o homem.

− Se não tem troco, então porque vocês anunciam o chuchu a um centavo o quilo? Se existe um preço, tem que ter troco.

Com medo de perder o emprego por coisa tão pequena, a moça apertou a campainha e jogou o problema para a colega responsável por abastecer os caixas com dinheiro trocado.

− Este senhor comprou 700 gramas de chuchu, pagou com um centavo e quer o troco, o que devo fazer?

− Isso é piada ou o quê, devolveu a outra moça.

Foi o suficiente para fazer o homem explodir de raiva.

− Você está me chamando de palhaço, minha filha? Eu quero o meu troco!

A moça do caixa riu aliviada. Não estava mais sozinha. O gerente do mercado ouviu a discussão e chegou perto. Soube da história e tentou uma saída diplomática.

− Meu senhor, o chuchu está muito barato, porque não aproveita e leva um pouco mais para completar um centavo, disse em tom de ironia.

− Muito obrigado, mas quero o meu troco, respondeu o homem.

Enquanto isso a fila aumentava e as pessoas chegavam perto para confirmar aquela história absurda. Um rapaz que trazia um carrinho cheio de latas de cerveja e esperava sua vez se saiu com essa:

− Dá uma cenoura de troco pra ele!

A fila riu, o homem do chuchu falou um palavrão. O gerente viu que a coisa estava crescendo e ficando fora de controle.

− Se não derem meu troco, vou à polícia, esbravejou o homem.

Não precisou. Um cabo da Polícia Militar que fazia a ronda na área comercial chegou à porta do mercado e foi logo solicitado por um empregado do estabelecimento.

− Parece que tem um louco lá dentro seu guarda, armando a maior confusão.

A chegada do PM encheu o homem de coragem.

− Não falei que ia chamar a polícia? Olha ela aí.

Entre impaciente e constrangido, o gerente explicou o caso ao policial, que ainda propôs uma das muitas soluções tentadas anteriormente, sem saber que o homem só queria uma coisa: seu troco.

− O senhor não sabe que não existe troco para moeda de um centavo? Perguntou o guarda.

− Sei, respondeu o homem. Mas também sei que se o mercado anuncia o quilo do chuchu a um centavo, pode ser que um cliente não queira levar um quilo, queira levar menos. É o meu caso.

− O senhor não acha que está fazendo muito barulho por nada?

− Meu troco é muito pouco, mas não é ‘nada’, enfatizou o homem. É uma questão de princípio lógico, completou, e ao dizer a frase olhou para as pessoas da fila com ar de superioridade, como se estivesse diante de uma horda de ignorantes.

− Mas esse troco não existe meu senhor, respondeu exasperado o guarda. E chega de conversa, o senhor me acompanhe até a delegacia, completou.

A fila aplaudiu a decisão, o gerente não sabia se a solução era a melhor, mas acompanhou o guarda e o homem. “É doido, mas é cliente”, pensou.

− Vou para a delegacia, mas fique sabendo que isso é abuso de autoridade, disse o homem.

O delegado de plantão era um sujeito magro e de olheiras e estava arrumando a mesa para ir embora quando os três chegaram. Soube pelo escrivão do resumo da história e arriscou:

− Mais um maluco. Deixa ele comigo.

Mas o homem era, como se diz por aí, carne de pescoço. Invocou as leis que sabia de cor, ameaçou o PM e o delegado e disse que eles estavam desrespeitando o Código de Defesa do Consumidor.

O delegado nem piscou. Avisou que poderia enquadrá-lo em vários tipos de crime, a começar por incitação à desordem pública.

− E esse crime existe mesmo? Perguntou o homem.

− Está no Código Penal, mas não me pergunte o artigo. O senhor escolhe: desiste desse caso, volta para o mercado e leva o seu chuchu, sem o troco; ou fica por aqui e só sai com advogado e pagando fiança.

O homem demonstrou que era teimoso, mas não doido. Aceitou a primeira proposta a voltou ao mercado acompanhado pelo cabo da PM, que lá estava para garantir o cumprimento do acordo.

− Muito bem. Este senhor vai levar o chuchu dele e vai pagar o que deve, sabendo que não existe troco para um centavo, disse o policial, olhando para as pessoas que ainda permaneciam no mercado e que aguardavam uma solução para a história.

O homem concordou com a cabeça e colocou a saco plástico do mercado sobre o balcão. Na hora de pagar não achou a moeda de um centavo que havia guardado para a ocasião. Procurou nos bolsos, e nada. Sob os olhares do guarda e dos empregados do mercado, abriu a carteira, tirou uma cédula e, com um sorriso de vingança no rosto, perguntou à moça do caixa:

− A senhora tem troco para cem reais?

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