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A frase terrível

Roberto Seabra - 21/11/2018


Muitos conhecem a história, mas até hoje não soube de ninguém que estivesse na hora e local exatos do acontecimento. Ela foi passada de geração em geração e virou lenda entre os moradores da quadra. Os mais antigos, no entanto, juram de pés juntos que foi tudo verdade.

Numa noite fria – pois houve um tempo em que as noites em Brasília eram frias – um grupo de rapazes e moças conversava embaixo do bloco. Só quem cresceu na cidade sabe o significado exato da expressão “conversar embaixo do bloco”. Em primeiro lugar, nem sempre era exatamente embaixo, mas poderia ser fora do bloco, na beira, em calçadas, bancos improvisados ou na lataria dos automóveis. Quase sempre à vista dos pais e vizinhos.

Pois bem. A noite avançava e a conversa estava animada. Pelo adiantado da hora, devia ser sexta ou sábado, que são os dias em que se permite esquecer a hora de dormir. De repente, uma chuva repentina molhou a todos que estavam ali “conversando embaixo do bloco”. Não era chuva natural, claro, mas produzida por um raivoso morador que decidiu esfriar a conversa da turma jogando um balde d’água pela janela. O balde devia ser dos grandes e a mira foi certeira, pois foi muita água que caiu e ninguém se safou seco naquela noite.

Um dos atingidos, que estava no centro da roda e ficou com seus longos cabelos à La Anos 70 pingando, gritou a terrível frase que teria desencadeado a tragédia. Claro que ele não fez por mal, foi apenas uma reação de quem se sentiu humilhado por aquela chuva artificial. O ser humano tem dessas coisas. Ele toma decisões sem pensar, apesar de sua pretensa racionalidade, e também reage deixando de lado a razão. Tenho pra mim que, em situações assim, limites, os animais são mais racionais que nós, pois em geral fogem, se afastando do centro do conflito, para só depois pensar no que fazer. Faz parte do instinto natural de sobrevivência. O homem prefere lutar, ou mesmo morrer ou matar, a fugir. Faz parte da nossa cultura de guerras.

A frase dita pelo jovem encharcado foi quase banal, não fossem as circunstâncias: “Joga a mãe!”. Ninguém diz isso a sério. Ninguém pensa realmente que alguém que tenha jogado um balde d’água do alto de um prédio, vá entender a frase ao pé da letra. Mesmo porque, se assim o fizesse, estaria cometendo um crime gravíssimo e inaceitável: o matricídio. Já o ato de jogar água sobre pessoas que estão importunando limita-se ao brincar, ao fazer troça. Não se deve levar isso muito a sério.

Mal se passaram alguns minutos, e os jovens foram surpreendidos com uma sombra que passou muito perto deles, seguida de um baque assustador, como se algo muito pesado tivesse caído do alto do bloco de apartamentos. Não podiam acreditar no que viam: um corpo de mulher, que devia ter entre 70 e 80 anos, estendido no chão, inerte. Literalmente alguém jogou a mãe lá de cima, ou a própria decidiu por fim à vida.

Entre gritos de ai meu deus e socorro, foi uma correria só. Cada um fugiu para um lado, deixando a pobre da mulher sozinha no meio da rua. Ninguém queria ser acusado de ter provocado aquela morte.

Poucas horas depois, o grupo combinou um encontro secreto, para conversar sobre o que aconteceu.

“Foi tudo uma infeliz coincidência”, disse um deles. Não havia lógica razoável entre um ato e outro. Alguém de fato jogou um balde d´água sobre eles, para reclamar do barulho. E também é fato, todos ouviram, que um deles gritou a expressão “joga a mãe”, que foi seguida de risadas. Já o terceiro fato, a queda do corpo da mulher, foi certamente um ato de suicídio, tão comum nas grandes cidades.

Todos aceitaram aquela versão, que realmente parecia a mais lógica, além de servir para acalmar os espíritos. E combinaram guardar segredo sobre o assunto. No dia seguinte, os moradores da quadra ficariam chocados com o suicídio da velha que morava no 5º andar. Semanas depois, ninguém mais se lembraria da pobre mulher, mas começava ali a lenda da terrível frase pronunciada naquela noite.

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