A árvore do pai
Roberto Seabra - 19/05/2018
− Quando morrer quero virar árvore, disse certa vez aos netos.
− E se morrer um bebê, vira uma plantinha? Perguntou a neta, de apenas cinco anos.
Ele achou melhor mudar de assunto, antes que a curiosidade dos netos levasse a conversa para o mau caminho do medo da morte.
Mas, ao voltar para casa, a pé, pois ele morava a poucas quadras da casa da filha, o homem continuou pensando no assunto. Nos últimos anos perdera tios, irmãos, primos, amigos... Parou de contar quando a conta ultrapassou os dez dedos das mãos. “Se cada um deles fosse uma árvore, daria para fazer um bosque”, imaginou.

"O tio Joaquim seria uma mangueira, daquelas que na primavera se enchiam de flores róseas que tapavam o verde das flores. Saulo, o irmão do meio que partiu de repente, morto num acidente de moto, seria um flamboyant laranja. Ele adorava essa cor”, pensou.
“E Jair, o amigo do carteado, qual árvore seria? Um pé de Jamelão, com aquelas folhas miúdas e uma imensidão de frutos, alimentando crianças e passarinhos”. Para cada saudade uma árvore.
E passou a pensar seriamente nessa, digamos, filosofia botânica, que via em cada pessoa morta uma possibilidade de vida vegetal.
“Se Deus me pedisse alguma sugestão, eu daria essa: quando morrer uma pessoa, transforme-a em árvore. O mundo ficaria mais arejado, o morto teria alguma utilidade, talvez mais do que em vida, e a família ganharia um monumento vivo para cuidar, podar, alimentar”.
Entusiasmou-se com a ideia. Imaginou milhares de árvores brotando pela cidade, cada uma um amigo, um parente, um vizinho, um ilustre desconhecido, uma mulher amada. “Que árvore seria a Marlene? Um ipê amarelo, vistosa e delicada, espalhando cores e perfumes”.
Mas, pensou, a idéia não era perfeita. E no dia em que a árvore morresse, o que restaria em seu lugar? Haveria o espírito da pessoa e outro da árvore, a vagarem pelo mundo de lá? Mas árvore não tem alma, ou tem? Logo encontrou uma solução. A vida botânica seria uma passagem, entre a vida terrena e a vida eterna. A pessoa morria, virava árvore, ficaria por aqui mais alguns anos e depois partiria de vez. A família e os amigos não perderiam totalmente contato com o morto, que, aliás, não seria um morto. Afinal, uma árvore é uma árvore, um ser sólido, vivíssimo, que produz frutos, flores, sombra.
O homem chegou ao prédio em que morava e não se decidiu subir. Entrou no carro e resolveu dar uma volta pela cidade para rever outros lugares e praticar mentalmente sua filosofia que dava vida, ainda que vegetal, aos mortos.
Era primavera e Brasília estava colorida pela variedade de árvores floridas. Ele passou em frente do prédio do Tribunal e ficou maravilhado com uma árvore imensa e solitária. Parou o carro e foi conhecer aquele verdadeiro “ente vegetal”. Ficou alguns minutos olhando a copa da árvore, acariciando o tronco. Meio sem jeito tentou abraçá-la, mas ela era muito mais grossa que seu abraço. “Que espécie seria aquela?”, pensou. Não era uma árvore qualquer, parecia um monumento e rivalizava com os prédios e palácios desenhados pelo genial arquiteto. De repente, ele sentiu uma ternura incomum pela árvore. Sua filosofia botânica havia encontrado naquele vegetal um exemplo perfeito.
“Essa árvore tem alma!”, exclamou para si mesmo. Ouvia com prazer o leve farfalhar das folhas, que soava como uma conversa miúda e descompromissada, dessas que entabulamos com uma pessoa que acabamos de conhecer, mas por quem já sentimos uma repentina simpatia.
De uma hora para outra o céu se fechou e começou a cair uma forte chuva, típica das primaveras de Brasília. Fazia muito calor e o homem recebeu a chuva com prazer. “Vão pensar que estou ficando doido, abraçando árvore, pegando chuva aqui parado, mas daqui não saio”, disse. Aquela árvore havia alargado sua filosofia botânica. No lugar de querer reformar o mundo e propor a Deus que substituísse a morte por uma sobrevida vegetal – “mais digna do que aquela oferecida pela nossa avançada medicina”, pensou – o homem decidiu colocar a árvore como solução para todas as crises do ser humano.
“É um ser perfeito. Vou criar a filosofia da árvore. Preciso pensar em um nome para isso, de preferência de origem grega ou latina”, disse.
O tempo passou e ele foi aperfeiçoando sua filosofia botânica, que passou a chamar de Arbologia. “Vem de arboreu, palavra latina que quer dizer arvoredo”, explicava. A Arbologia passou a ser usada por ele para resolver todos os problemas, reais e imaginários.
− Pai, acho que o César está deprimido, disse certa vez a filha sobre o marido.
O pai tinha a receita.
− As árvores também ficam deprimidas, quando não tomam sol ou se sentem sozinhas. Pegue seu marido e as crianças, tirem uns dias de folga e viajem para a beira da praia, disse.
Até as crises econômicas do País, na sua visão, poderiam ser revolvidas pela Arbologia.
“Vejam o Brasil. É o País das árvores. Tem árvore até no nome. Na nossa bandeira prevalece o verde, das matas. Nossa história econômica sempre esteve relacionada às plantas: o pau-brasil, a cana-de-açúcar, a seringueira, o café, que é um arbusto, ou seja, um tipo de árvore. Nossa Amazônia, a Mata Atlântica, o Cerrado, único no mundo. As árvores! Elas são a solução para os problemas do Brasil. Vamos concentrar todos os nossos esforços em preservar e plantar novas árvores. Um milhão, cem milhões, um bilhão de árvores. A maior potência verde do Planeta também será a maior potência econômica, no futuro”, sonhava o homem.
Tal qual um Policarpo Quaresma, ele passava os dias aperfeiçoando sua filosofia. Virou o guardião das árvores da cidade. Conhecia todos os bosques e identificava todas as espécies.
Viveu muito. “Sou um jequitibá”, dizia para a família, “viverei duzentos anos”. Morreu robusto aos 99 anos. A filha encontrou uma carta onde o pai dizia que, ao morrer, queria voltar ao pó e fazer companhia às suas amigas árvores. A filha entendeu o recado. O corpo do pai foi cremado e as cinzas foram misturadas à terra adubada, juntamente com uma muda de jequitibá.
Passados muitos anos, a árvore do pai continua lá, no jardim da casa, fazendo sombra para as brincadeiras das crianças.