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O Brasil de Cora Coralina ressurge em Maria Valéria Rezende


Roberto Seabra - 20/03/2018


Imagine uma mulher que, aos 59 anos, lança seu primeiro livro, povoado de “beatas, sonhadores e cabras-machos”, viventes do semiárido brasileiro. Quatorze anos e alguns livros depois, ela ganha o Prêmio Jabuti de melhor romance do ano, desbancando Chico Buarque e Cristóvão Tezza. Para completar ela é freira há mais de cinquenta anos, viajou pelo mundo como missionária ajudando comunidades carentes e escreve sobre um tema fora da moda: a pobreza e a vida dos sem-nada: sem-terra, sem-teto, sem-perspectivas.

Aos 75 anos, Maria Valéria Rezende voltou a surpreender em 2017, ao ter um segundo romance, Outros cantos, entre os três finalistas do principal prêmio de literatura do País. Em 16 anos de vida literária são três romances (um deles é Quarenta dias, vencedor do Jabuti em 2016), quatro livros de literatura infanto-juvenil e Vasto mundo, sua estreia literária, que reúne narrativas curtas sobre personagens sertanejos.

Maria Valéria Rezende nasceu em Santos (SP) e mora em João Pessoa, Paraíba, em uma comunidade religiosa. Teve uma trajetória de vida surpreendente. Nos anos 60 integrou a Juventude Estudantil Católica (JEC), berço da Teologia da Libertação, “corrente teológica da Igreja Católica que preconiza que o Evangelho exige uma opção preferencial pelos pobres”, como explica uma das reportagens publicadas sobre ela.

Também foi educadora popular no sertão, onde aplicou os ensinamentos de Paulo Freire na alfabetização de jovens e adultos. Viajou pelo mundo, na condição de missionária da Igreja Católica, estudou literatura e se considera uma leitora voraz. “Leio de tudo. Inclusive best-sellers”, disse em outra entrevista.

Difícil não comparar Maria Valéria Rezende com Cora Coralina, a poeta goiana que lançou seu primeiro livro aos 75 anos e foi “descoberta” pelo poeta Carlos Drummond de Andrade aos 90.

Não se trata aqui apenas de uma questão etária. Tanto Maria Valéria Rezende quanto Cora Coralina trouxeram para a literatura seres esquecidos. Drummond, em uma crônica que se tornou famosa, escreveu que Cora Coralina “se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os”.

Em Outros cantos, que terminei de ler há poucos dias, Maria Valéria Rezende “exalta os humilhados” pelo olhar da personagem Maria, uma mulher que volta ao sertão quatro décadas depois, de onde fugiu para não ser presa pelos militares golpistas de 1964.

A Maria de hoje relembra a Maria do passado, alfabetizadora do Mobral (projeto criado pela ditadura para tentar ensinar jovens e adultos a ler e escrever), e que, enquanto aguarda que um vereador da pequena Olhos D’água lhe dê as condições de trabalho e lhe pague um minguado salário, vai convivendo e conhecendo as famílias sertanejas.

Os personagens mostrados em Outros Cantos, em especial as mulheres, são fortes e delicados, suportam o sofrimento com rezas e poesias, ainda que não-escrita e transmitida de ouvido em ouvido pelos repentistas.

Humildes ou humilhados, os seres reconstituídos por Cora Coralina e Maria Valéria Rezende, em versos ou em prosa, povoam um Brasil esquecido e miserável, seja ele urbano ou rural.

Cora Coralina mostrou um interior que era de Goiás, mas também do Brasil, repleto de mulheres sofridas, mendigos e crianças de rua. Maria Valéria Rezende, ao escrever sobre os homens, mulheres e crianças sertanejos, fala de um país que guarda na simplicidade a beleza. E onde a fome ou a sede não são desejos momentâneos, mas perspectivas de vida.

Ao mostrar o Brasil que mudou nos últimos anos – a pobreza simples do interior do Nordeste deu lugar ao consumo quase opulento – Maria Valéria Rezende critica o passado de miséria, mas não perdoa o presente. Em certo trecho de Outros cantos, a personagem desanca a onda fast, que alcançou os mais remotos rincões do Brasil e todas as relações humanas. Vale a pena copiar aqui um trecho mais longo dessa sua crítica à ligeireza.

“Não é só o fast-food no estômago, é o fast-food no cérebro: fast-news, fast-thinking, fast-talking, fast-answering, fast-reading. Parece um complô para me obrigar a ser cada vez mais fast, em tudo, a ser avaliada e a me avaliar pela minha rapidez de resposta e atualização. Ave! E quem pode, assim, continuar a ser gente, ter juízo e saúde? Rapidez obrigatória não combina com reflexão, raciocínio complexo, construção de argumentos fundamentados, avaliação crítica e honesta do argumento alheio, recuperação da memória, verificação conscienciosa das informações recebidas, pensar e julgar com ideias e valores coerentes e abrangentes. Sem isso, não é possível o debate honesto e profundo de coisa nenhuma, a intolerância e a violência se espalham por aí. Afinal, desde sempre o argumento mais rápido em qualquer disputa parece ter sido a força, o golpe, a violência, desde o tacape até o drone bombardeiro. ”

Na sequência de Outros cantos li o premiado Quarenta dias. O livro é um impressionante (e bem-humorado) relato de uma mulher nordestina que resolve peregrinar pelas ruas de Porto Alegre, depois de se ver sozinha e abandonada na cidade. Na capital gaúcha, a paraibana Alice – que no livro é confrontada com sua xará do livro famoso de Lewis Carroll – convive com moradores de rua e mostra um universo ao mesmo tempo próximo e desconhecido para a maioria dos leitores. O humor fica por conta do diálogo (ou monólogo) imaginário entre a protagonista e a boneca Barbie que ilustra o caderno onde ela relata suas memórias.

Mas, ao contrário da Maria de Outros cantos, que vê a paisagem humana de forma um pouco distanciada – seja pela memória remota ou pelo olhar de viajante sensível –, a Alice de Quarenta dias mergulha fundo na vida dos seres que encontra pelo caminho. É mesmo uma Alice num país maravilhoso, só que real e povoado por gente humilde.

Maria Valéria Rezende conseguiu em seus livros atingir uma escrita ao mesmo tempo simples e rigorosa. Escreve como quem tivesse contando histórias, mas faz isso com método e linguagem sofisticada. Sua obra é uma demonstração clara de que quando o rigor formal da escrita e a vivência que dá conteúdo à história se encontram, o resultado surpreende. E nisso, ela se parece ainda mais com Cora Coralina.

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