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Um golpe contra Brasília


Roberto Seabra - 05/01/2018


Certa vez tive uma discussão acalorada - mas felizmente bem humorada - com uma amiga que odiava Brasília. O sonho dela, como de outros moradores da cidade, era ir morar no Rio de Janeiro. Quase que faço a pergunta mal criada: então porque não vai? Quem tá te segurando? Mas segurei a ofensa. Afinal, também adoro o Rio e em outros tempos pensei em morar lá.

Invasão da UnB por militares em 1968 (Crédito: Cedoc/UnB)

Mas um argumento apresentado pela minha amiga deixou-me indignado. Segundo ela, Brasília era um projeto dos militares, que haviam apoiado a transferência da capital já pensando em dar o golpe. "Se a capital ainda fosse no Rio, o golpe não teria vingado", disse ela.

Fiquei remoendo aquela frase por alguns minutos, sem ter uma resposta na ponta da língua. Lembrei-me então das aulas de História do Brasil no segundo grau, quando o professor explicava porque a cidade de Salvador havia sido escolhida para ser a sede da Colônia: em razão da proximidade com a principal riqueza do país, a cana de açúcar produzida no Nordeste. O mesmo raciocínio levou a Coroa portuguesa a transferir a capital para o Rio de Janeiro: por sua proximidade com o ouro de Minas Gerias.

Esgotada a produção de metais preciosos naquela região, o Rio continuou sendo a capital por outras razões de ordem política e cultural, mas não mais por razões econômicas. Foi apenas em meados do século 20 que a ideia de transferir a capital para o centro do país retomou força, justamente durante o período democrático que vai de 1946 até março de 1964. Duas razões de Estado motivaram o projeto: o deslocamento do eixo de desenvolvimento para o interior do país e o perigo de ter uma capital litorânea, à mercê de supostos ataques inimigos, em um país continental como é o nosso.

Uma terceira razão, esta sim fazendo coro ao argumento da minha amiga, lembrava que no Rio de Janeiro os poderes estavam sempre "encurralados pelas massas". Qualquer manifestação com duas centenas de pessoas em frente ao Palácio Tiradentes (sede do Poder Executivo), colocava o País de prontidão.

O problema é que esse argumento não partiu de um militar, mas sim de Juscelino Kubitschek. JK acompanhou na condição de deputado federal os governos civis que vieram após a redemocratização de 1946 e incomodava-se com o fato do Rio de Janeiro ser muito maleável à pressão de minorias radicais, de direita ou de esquerda.

Ele achava que essa característica da capital desequilibrava a União e dava muito poder às "minorias organizadas" do Centro Sul, em detrimento das "maiorias silenciosas" que moravam nos rincões do País.

Tentei resumir esse pensamento para a minha amiga, mostrando que se fosse para devolver a sede da capital ao legítimo dono, Salvador teria prioridade. "Antiguidade é posto", eu disse. "ok, eu topo", respondeu ela com bom humor.

Mas não pude deixar de concordar com ela que uma capital pouco povoada e de arquitetura monumental favorecia os planos dos milicos de plantão, que deram o golpe em 1º de abril de 1964 com o apoio de lideranças civis e empresariais.

Mas o que surpreende hoje, olhando pelas lentes da História, é que Brasília não seguiu exatamente esse script planejado para ela. A nova capital começou a dar trabalho aos militares muito cedo. Em 1968 eles invadiram a Universidade de Brasília para "desbaratar focos comunistas", como eles gostavam de dizer. E foi em Brasília, em 1976, que aconteceu a primeira grande manifestação popular nas ruas (pacífica e ordeira, diga-se), para dar adeus a JK, morto naquele ano.

Eu fico imaginando o contrário da minha amiga. Como teria sido Brasília crescendo em meio ao regime democrático, com a plena implantação do modelo educacional de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro? Como seria hoje a UnB se não tivesse perdido centenas de seus cérebros mais brilhantes nos anos 60 e 70? Qual cidade haveria hoje se o modelo de educação pública tivesse sido totalmente implementado? Sabemos que educação é tudo, que alguns países que saíram da miséria em poucas décadas, como foram os casos da Finlândia e da Coréia, apostaram todas as fichas na educação. E como capital do País, o modelo de educação pública de Brasília, bem sucedido, serviria de modelo para todo o Brasil.

Brasília nasceu de um sonho, mas teve que conviver, ainda criança e durante longos 21 anos, com um pesadelo. Ao contrário do que muitos pensam, acredito que nenhuma cidade sofreu tanto quanto a nova capital com o golpe anti-democrático de 1964.

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